Para Haddad, relação da Universidade com a Prefeitura de São Paulo não irá mudar

Ocupações, eleições municipais e crise das esquerdas: confira os principais assuntos abordados na entrevista com o prefeito Fernando Haddad
Foto: Leonardo Mastelini
Foto: Leonardo Mastelini

Do bacharelado na Faculdade de Direito em 1985 ao cargo de professor doutor no Departamento de Ciência Política da FFLCH, a relação de longa data de Fernando Haddad com a USP foi entremeada pelos quatro anos em que esteve à frente da Prefeitura de São Paulo. Em seus dias finais de mandato, o prefeito recebeu o Jornal do Campus em seu Gabinete para abordar assuntos que estiveram no radar do JC e debates que acompanharam o país ao longo de 2016.

Jornal do Campus: Na sua opinião, a mudança da prefeitura irá afetar a Universidade de São Paulo?
Haddad: Negativamente, acredito que não. A USP vive um momento delicado como todo o país, de muita restrição orçamentária em função da recessão. Mesmo assim, temos estabelecido parcerias importantes com a Universidade no campo da educação, como é o caso de alguns cursos da Unesp, Unicamp e USP que estão sendo oferecidos na UniCEU, as universidades que nós instalamos dentro dos CEUs. Além disso, a USP cedeu um terreno para instalarmos creche e UBS para atender a comunidade da São Remo, e isso também ajudou. De um modo geral, são projetos de Estado que elaboramos durante anos, e não teria por que a nova gestão abrir mão desse tipo de coisa que é boa pra todo mundo. São projetos que levaram tempo para serem viabilizados do ponto de vista econômico-financeiro como estão agora. O trabalho que vem pela frente é, de certa maneira, mais fácil, porque a equação está fechada.

JC: E na educação municipal, de que maneira você acha que pode mudar?
Haddad: A interação entre a Universidade e os professores da rede municipal tem acontecido menos do que a gente gostaria, ainda não há muito engajamento e disposição para o desafio que é a formação deles — a não ser pelos cursos de aperfeiçoamento eventualmente oferecidos, pelos quais temos enorme apreço. Mas a USP também tem feito gestos que são dignos de nota. A adoção do Enem, por exemplo, é um passo gigantesco. Até porque o elo mais frágil do ciclo educacional é o ensino médio, e ele está precisando mais do que nunca da Universidade para formar professores, qualificá-los e promover alterações curriculares importantes.

JC: Sobre o Enem e todo o impasse envolvido nas ocupações e o adiamento da prova, você acredita que o governo Temer lidou bem com essa situação? Se estivesse como ministro da Educação hoje, como você lidaria com as ocupações das escolas?
Haddad: A origem do problema foi a edição da Medida Provisória [MP 746/2016]. Ninguém concorda com uma reforma educacional feita por MP, não é tradição na educação. Tanto é verdade que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, nunca foi reformada por medida provisória, e olha que são muitos os ministros que passaram pela pasta! Eu mesmo fiquei oito anos no Ministério da Educação e jamais passou pela cabeça de ninguém do ministério fazer reforma da LDB por medida provisória, porque não existe reforma sem envolvimento da comunidade. Como é que você vai reformar o ensino sem a adesão dos estudantes e dos professores? A reforma do ensino é sempre uma vitória do diálogo, do consenso ou de uma hegemonia majoritária em torno das medidas que estão sendo propostas. Embora haja matérias interessantes na medida provisória, como a divisão de disciplinas por áreas que já é uma prática do novo Enem, tudo isso poderia ser dialogado com as entidades nacionais que lidam com esse assunto no dia-a-dia, como o movimento estudantil, a Ubes [União Brasileira dos Estudantes Secundaristas] e as faculdades de Educação. Então a origem é essa. E aí os alunos reagem a isso e depois são condenados? Fica difícil. É fácil jogar a opinião pública contra os estudantes, mas se formos justos, veremos que a origem do problema está na forma de lidar com a reforma.

JC: Então você acha que daria pra lidar de outra forma que não fosse o adiamento?
Haddad: Eu entendo o seguinte: quando começaram a haver as ocupações, as entidades  já deveriam ter sido chamadas para o diálogo para evitar que esse adiamento fosse necessário. Eles poderiam ter combinado um armistício do tipo “nós vamos encaminhar um projeto de lei e vocês desocupam a escola pra ninguém se prejudicar”. Mas o governo optou pelo confronto, na minha opinião, totalmente desnecessário, porque os estudantes também querem melhorar o ensino médio, então...

JC: E com relação às outras pautas dos secundaristas contra o Projeto de Lei Escola Sem Partido e a PEC 55, como você avalia essas reações?
Haddad: A Escola Sem Partido é, na verdade, a escola do partido único, porque você vai ter uma história oficial para contar, é isso o que está na cabeça dos idealizadores do projeto. O que a gente quer é que a escola seja plural, que o estudante seja submetido a todas as visões de mundo para que possa formar juízo crítico sobre elas, então não pode ter tabu na escola: ele gera o efeito contrário ao pretendido. Na hora que você proibir alguma coisa na escola, as pessoas vão reagir. Se a escola é digna do nome e, por definição, um espaço de construção de autonomia, como é que ela vai aceitar uma proibição? Não faz sentido nenhum. Já a PEC 55 diz respeito ao financiamento da educação, mas como é que podemos manter congelado o orçamento da educação por 20 anos? Corrigir pela inflação é o mesmo que congelar, em termos reais. Com tanta gente ainda fora de creche, fora da universidade, tanta gente querendo qualidade de ensino, uma juventude ávida por oportunidade, como dizer que em 20 anos isso é tudo o que temos para oferecer?

JC: De que forma você acredita que as reformas propostas pela PEC podem afetar o ensino superior e o acesso a ele?
Haddad: Nos últimos anos, houve um crescimento importante do orçamento do Ministério da Educação que permitiu dobrar o número de universitários, melhorar a qualidade do ensino fundamental, ampliar, como nunca, o acesso à educação infantil e permitir que pessoas com deficiência frequentem a escola regular. Isso tudo não caiu do céu, foi decisão política de aumentar o orçamento da educação. Hoje tem muito mais escola técnica, universidade, bolsa de estudo e financiamento estudantil, e isso não é feito sem dinheiro. Só no período que permaneci no Ministério da Educação, o orçamento multiplicou por quatro.

JC: Esse ano, O Globo fez um editorial a favor da privatização do ensino público superior. Alguns meses depois, o debate voltou à USP por conta de uma parceria com uma consultoria privada. Dentro do atual cenário, o quão palpável seria a concretização da privatização do ensino superior?
Haddad: Isso exigiria uma emenda constitucional, que eu acho muito difícil passar, até porque nós conseguimos resolver parte do problema. Antes, se dizia que havia mais aluno de escola particular do que de escola pública nas universidades públicas, e que não era justo que os pobres financiassem os ricos. O que nós fizemos? Reservamos 50% das vagas para aluno de escola pública, e isso já amenizou muito. Se não me engano, o último censo dá conta de que quase 2/3 dos jovens nas universidades federais são de escola pública, então você tem mecanismos para corrigir essas distorções que não passam pela cobrança de mensalidade, até porque talvez seja dos poucos lugares do Brasil, infelizmente, em que ricos e pobres convivam em igualdade de condições. Para forjarmos uma nacionalidade, o Brasil inteiro precisa estar dentro da universidade, sem distinção entre pagantes e não pagantes.

JC: Em face a todos os cortes de verba e tentativas de aprovar Projetos de Lei que afetem diretamente a educação, você vê apatia no movimento estudantil da USP?
Haddad: Faz tempo! Acredito que ele esteja devendo para a comunidade. Eu participei do movimento estudantil da USP, e nos anos 80 ele era muito ativo. Na campanha das diretas, por exemplo, o movimento estudantil teve papel fundamental. Eu fui presidente do XI de Agosto [Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da USP], e lembro que nós tínhamos um DCE atuante. Hoje, na minha opinião, os DCEs das federais são os mais ativos.

JC: Qual o principal problema que você enxerga nos movimentos estudantis de hoje?
Haddad: É difícil dizer, porque há uma rotatividade grande de lideranças e cada DCE é um DCE… mas, para ser honesto, estou otimista em relação ao movimento dos estudantes; hoje mais do que ontem. Há uma tomada de consciência sobre os riscos que nós estamos correndo no Brasil e, na sociedade, quem está se mobilizando são os secundaristas e os universitários.

JC: No âmbito da USP e dos movimentos estudantis, muito se fala sobre um confronto entre as esquerdas. No Brasil também. Qual o seu balanço sobre essa situação?
Haddad: A esquerda sofreu uma derrota grande no Brasil, por várias razões conhecidas, e o risco que existe é o de fragmentação. A ideia de que você vai substituir o PT por outro partido automaticamente, como se tivesse um campo à espera de um novo protagonista, não vai acontecer. Não efetivamente. Ou se constrói uma noção de campo para o qual as pessoas levem sua contribuição e adensem esse campo para que ele volte a ter uma participação competitiva, ou o risco é de fragmentar. Como eu disse na entrevista à Folha, temos a direita concorrendo com a extrema direita, e a esquerda fica de fora. Como aconteceu nos EUA, como está acontecendo na Europa… A esquerda não tem entrada para disputar.

Foto: Leonardo Mastelini
Foto: Leonardo Mastelini

JC: Partidos como o PSOL e a Rede, que se autodenominam com uma proposta diferente, seriam uma alternativa ou jogada política?
Haddad: Você não repete a história. É muito difícil criar as condições e o arranjo que, no fim dos anos 1970, começo dos 80, deu origem ao PT que governou o país durante quatro eleições presidenciais. Você não repete esse arranjo, não dá para tirar uma peça e por outra no lugar porque o campo está lá. O campo é uma construção política, ele próprio, tanto é que tem inúmeros países que não têm força de esquerda. Não existe esquerda em tantos países do mundo porque a construção desse campo não é óbvia, ela é a produção de um determinado ativismo, de uma determinada circunstância histórica, que faz com que o partido que queira transformar a realidade social tenha viabilidade eleitoral. Isso são casos raros, não é a regra, sobretudo, depois da crise das esquerdas no mundo a partir dos anos 80. Até então você tinha partidos de esquerda fortes na Europa, mas não é o caso mais.

JC: E você acredita que o PT deixou de ler esse campo, tendo em vista a derrota nas últimas eleições?
Haddad: Acho que o principal erro do PT foi não ter feito a reforma política. Sempre achei isso: se a gente não fizesse uma reforma estrutural do Estado, com o tempo nós poderíamos recair nos erros que os partidos tradicionais costumam praticar. Ou seja, nos transformarmos num partido tradicional. Não adianta ter compromisso com o pobre, distribuir renda e garantir o acesso à educação se você não reformar o Estado. E nós não reformamos, essa que é a verdade.

JC: E o impeachment teve influência sobre esse resultado negativo??
Haddad: O impeachment é uma decorrência disso. Aliás, ele criou as condições para que acontecesse uma inovação, que é o impeachment sem crime de responsabilidade.

JC: E o que aconteceu em São Paulo, você entende como um reflexo de todo o país ou uma particularidade local?
Haddad: Acho que é um reflexo de todo o país, mas existem particularidades daqui.

JC: Quais?
Haddad: Aqui você tem um pensamento único que é veiculado em todas as emissoras de radiodifusão. Não há diferença entre canais de rádios e televisão a respeito do que tem que ser feito, e quando há uma pauta diferente da radiodifusão tradicional, você tem um choque muito grande de percepção. E o mais engraçado é que, passada a eleição, muita gente que era contra, se torna, de repente, a favor de coisas que estão sendo feitas no mundo inteiro. Nós temos um problema também, além da reforma do Estado, que é a falta de pluralidade de visões de mundo nos meios de comunicação. Você tem uma unicidade de pontos de vista que é muito difícil interagir, os veículos todos se parecem muito uns com os outros.

JC: Sobre a nova prefeitura, a campanha de João Doria se sustentou em campanhas como o congelamento das tarifas e aumento da velocidade das marginais. Após ser eleito, ele tem voltado atrás em muitas dessas propostas. O que você acha disso?
Haddad: Não sei se ele vai voltar atrás, tem que ver quando começar o governo. Mas só da pauta ter sido essa, diz muito sobre o caráter da eleição. Uma  metrópole como São Paulo passar o tempo todo discutindo [questões de trânsito]… Daqui a pouco a gente vai discutir mão de rua! É estranho, acho bem estranho isso.

JC: Se por um lado o seu mandato dialogou com pautas e debates ligados a setores sociais comumente oprimidos, para a próxima gestão temos um vereador como Fernando Holiday que, apesar de negro e LGBT, vai totalmente na contramão. Quais seriam os prejuízos?
Haddad: Veja bem, as secretarias tanto de Promoção da Igualdade racial, quanto a de Políticas para as Mulheres [inauguradas na gestão Haddad], deram contribuições extraordinárias para a cidade. Na minha opinião, essa agenda se impôs na cidade com benefícios expressivos. Você não tinha procuradores negros na carreira municipal, tinha um ou dois. Hoje, você tem 20% do último concurso de negros, e é importante refletir na máquina pública a diversidade da cidade. Não tem como não haver prejuízo com a questão dos imigrantes, LGBT, da mulher com a falta de uma pessoa que a enfrente do ponto de vista intersetorial e tome pra si fazer a diferença na máquina pública em relação a essas agendas identitárias. Não temo por alguma regressão [em termos do que já foi feito], mas não dar visibilidade para esses problemas é uma forma de regressão.

JC: Fora isso, quais as suas maiores preocupações frente a próxima gestão?
Haddad: É cedo para dizer, porque foi uma eleição tão rápida e baseada em frugalidades, que é difícil dizer. “Vai fiscalizar por radar, não vai fiscalizar por radar”… Olha a que ponto chegamos! Virou um debate realmente muito empobrecido.

JC: E a questão da transparência da Controladoria Geral do Município [João Dória decidiu por subordinar a GCM à pasta de Negócios Jurídicos a partir de 2017 para corte de despesas]?
Haddad: A controladoria perder status de secretaria é quase que matar a ideia, porque nunca vi um controladoria funcionar como deve se subordinada a um secretário. Ela tem que estar colada no prefeito para funcionar como deve e com um grau de autonomia que só um prefeito pode dar.

JC: Com o fim do mandato, quais são seus planos futuros?
Haddad: Acho que o tempo tem que andar um pouco para ver o que que vai acontecer com o Brasil em 2017. Estou há 16 anos no governo, então é hora de sair também um pouco e respirar os ares da planície. Mas estou sempre disponível para o debate, vamos ver como é que posso colaborar de alguma maneira. Não estou muito preocupado com minha posição num projeto, estou preocupado com o projeto existir. Antes de pensar no que você vai ser, acho que você tem que ver “pelo que eu vou lutar? Qual é o plano de voo?” Eu estou sempre motivado por alguma paixão, por alguma vontade de fazer, não tenho um projeto pessoal. Aliás, acho que quem é de esquerda não pode ter projeto pessoal. Projeto pessoal não combina com a visão de sociedade que eu tenho.

 

Por Bianka Vieira, Ethel Rudnitzki, Alexandre Amaral e Leonardo Mastelini