Show Medicina ainda é divulgado na FMUSP

Criação do quadro misto está entre as reformulações, mas a pouca transparência dificulta o diálogo ainda polarizado

Foto: Taís Ilhéu

Por Natan Novelli Tu e Taís Ilhéu

Às vésperas da 75ª apresentação do Show Medicina (SM), no início deste mês, o espaço da FMUSP conhecido como Porão teve suas paredes cobertas, do chão ao teto, por cartazes que anunciavam e convidavam ao espetáculo. Para além da ostensividade, a divulgação em si é questionada por aqueles contrários ao evento.  Em novembro de 2014, foi instaurada a Comissão Parlamentar de Inquérito — conhecida como CPI dos Trotes responsável pela investigação das violações aos direitos humanos e ilegalidades no âmbito da Universidade de São Paulo. Nele, o SM, acusado em diversos depoimentos, passou a ser proibido por recomendação do Ministério Público Federal de realizar ensaios, apresentações e tampouco divulgar suas atividades nos espaços da FMUSP. O secretário nacional de Direitos Humanos do PT, Adriano Diogo, à época presidente da CPI, reitera a proibição também pelo caráter privado da instituição, que tem CNPJ e, segundo ele, não pode ser classificada enquanto atividade estudantil. Procurada pelo JC, a diretoria da FMUSP afirmou que “não cabe a ela censurar as atividades dos estudantes nos espaços restritos a eles”. A resposta não responde, no entanto, a existência de duas placas, no quarto andar da Faculdade, em homenagem aos antigos diretores do SM.

Silêncio

As acusações ao Show na ocasião giravam, principalmente, em torno dos bastidores e da própria organização da instituição, além de críticas ao caráter machista, homofóbico e preconceituoso de alguns quadros. As denúncias que eclodiram entre 2014 e 2015  relatavam episódios de humilhação e violência principalmente no processo de entrada para o SM, conhecido como “Vestibular”. “Presenciei xingamentos, ameaças físicas, a obrigatoriedade da nudez e da embriaguez no momento do que seria supostamente uma apresentação teatral para avaliar a aptidão artística dos candidatos”, relatou Augusto Ribeiro, que foi membro ativo do Show durante os anos de 2012 e 2013.

À época da CPI, em diversos depoimentos, foi mencionada a tentativa de silenciamento sobre o que acontecia não apenas no Vestibular — mesmo este aberto à qualquer aluno da FMUSP — como nas outras atividades do Show. A justificativa seria de que o Show é uma experiência que deve ser sempre inédita (vivida com surpresa aos que ingressam na Faculdade), já que só é possível compreendê-la quando vivenciada. Segundo relatos, neste ano, o trote, que ainda perdurou por dois anos após a CPI, não fez parte do processo e houve apenas uma recepção. Outros sete membros do SM contatados por telefone, por meio de redes sociais, e inclusive presencialmente pela reportagem não se pronunciaram para esclarecer sobre essa e outras eventuais alterações dos últimos anos. Quanto a isso, uma fonte acredita que esse isolamento se dá pelo olhar estigmatizado com que aqueles de fora olham para o Show.

A estrutura

Para além dos casos de violência, a própria estrutura organizacional do Show é questionada por alguns alunos e pelos coletivos da Faculdade. Tradicionalmente, as mulheres fazem parte de um aparato à parte denominado Costura, responsável pela confecção do figurino que os homens vestem no dia da apresentação. Renata Mencacci, aluna do quinto ano, acredita que “isso retoma muito a posição historicamente que as mulheres são colocadas, restritas ao lar, e nunca como sujeitos políticos, artísticos.” Ana Cunha afirma ter sido expulsa da Costura no ano de 2013, quando questionou a ausência da participação feminina no processo criativo. Segundo ela, a revolta surgiu após um quadro em que se  representava médicos cubanos como profissionais incompetentes.

Apesar da apresentação contar agora com um quadro misto, em que as mulheres podem atuar junto com os homens, o JC esteve no Show e observou que a representação feminina girou quase sempre em torno de estereótipos, como em um quadro que representava um duelo entre uma “feminista histérica” e um personagem “cis-hétero” que utilizava o ataque “cantada de pedreiro”.

Renata avalia a criação do quadro misto como um recurso do Show para continuar subsistindo, e relata inclusive que, após a mudança, a instituição solicitou à direção da FMUSP a autorização para retornar aos espaços da Faculdade — pedido que foi negado sob a justificativa de que as orientações do MPF não poderiam ser descumpridas. Ela levanta ainda uma outra crítica, que ela entende como a tentativa de desmoralização dos coletivos que travam lutas em prol das minorias na Faculdade. Um esquete curto do Show, por exemplo, trazia jogadores de Pokémon Go capturando pessoas de gêneros diferentes, sendo o “cis-hétero” de tipo raro.

Contradição

Situações como essas são tachadas de retrógradas pelos críticos do Show, mas a visão que ele próprio enuncia de si segue o contrário. No depoimentos da CPI, diversos membros do Show afirmaram que o objetivo fim das apresentações era, por meio do humor, defender a liberdade de expressão e criticar os problemas enfrentados na Universidade. De fato, no Show, a reportagem do JC assistiu a dois quadros cujos temas discutiam a desvinculação do Hospital Universitário e das tentativas de suicídio decorrentes da pressão do curso. Por meio de relatos nas redes sociais, diversos membros do Show agradeceram aos colegas e o espaço de apoio e convivência que afirmam ter na instituição, opinião compartilhada por um ex-integrante que afirma ter lá um espaço de expressão maior do que em outras extensões estudantis.

No entanto, há uma hierarquização de cargos do Show, na qual o diretor geral e os alunos das turmas mais velhas são responsáveis pelo processo criativo e pautam os temas das apresentações. Já a atuação do Show na luta estudantil é questionada por Renata, que afirma que o engajamento se restringe ao que é dito no palco e não constitui de fato uma movimentação política. Para ela, há ainda uma incompatibilidade entre os discursos enunciados pela instituição. Não adianta nada fazer um quadro sobre saúde mental se eles são agentes diretos que prejudicam o bem estar mental de algumas pessoas dentro da FMUSP”.