Should I stay or should I go?

(Arte: Isabel Marchenta)

Mesmo com violações aos direitos humanos, boicotar Israel não é uma escolha tão fácil

Por Fredy Alexandrakis

É algo estranho quando sua banda favorita e a banda favorita de seu pai começam a brigar no seu feed de notícias. Radiohead e Pink Floyd sempre foram grupos que não se esquivam de colorir suas músicas com posicionamentos políticos, mas, a princípio, imagina-se que os dois ficariam no mesmo lado da discussão. Ícones de suas respectivas gerações, uma preocupação tanto de Thom Yorke, vocalista e frontman do Radiohead, quanto de Roger Waters, baixista do Floyd, é com injustiças e distopias. Então por que, neste ano, os dois debateram publicamente — de forma quase grosseira — sobre uma causa que provavelmente os uniria: o desrespeito aos direitos humanos dos palestinos em Israel?

Bem, se você é antenado nas notícias do mundo cultural, sabe que não é a primeira vez de Waters nesse rodeio. A última semana o viu trocando farpas com Nick Cave, cantor-compositor australiano consagrado, por sua decisão de fazer um show em Israel. É o mesmo motivo da briga com Yorke no começo do ano, e das cartas de sua autoria, direcionadas a Caetano Veloso e Gilberto Gil, em 2015. O co-fundador do Pink Floyd é engajado em um movimento conhecido como BDS: Boicote, Desinvestimento e Sanções, voltados à Israel.

“Por que boicotar Israel?” é uma boa primeira dúvida para um leitor pouco familiarizado com o assunto. Pedro Charbel, graduado em Relações Internacionais e mestrando em Sociologia na USP, é coordenador latino-americano do Comitê Internacional Palestino de BDS e falou um pouco com o Jornal do Campus sobre o movimento. Segundo relata, o BDS tem três objetivos claros:

1. O fim das ocupações de Israel na Cisjordânia e na Faixa de Gaza e derrubada do muro que as limita;
2. Igualdade de direitos para árabes-palestinos em Israel;
3. Direito de retorno aos palestinos refugiados da diáspora, em conformidade à resolução 194 da Assembleia Geral das Nações Unidas.

Há quem boicote o país desde sua fundação, no entanto, o BDS toma forma em 2005, com a determinação da Corte Internacional de Justiça de que o muro construído entre Israel e Cisjordânia é ilegal. Dessa determinação teria nascido o que Charbel define como um “chamado” da sociedade civil palestina — assinado por diversas organizações –, para que a comunidade internacional rompesse laços de cumplicidade com Israel e, consequentemente, com as ocupações e violações de direitos humanos.

“Qualquer pessoa pode fazer parte desse chamado”, pontua, “então, os estudantes aqui da USP podem olhar nas suas próprias unidades”. O rompimento dos “laços de cumplicidade” consiste, aos olhos do BDS, no término de praticamente qualquer relação com o Estado de Israel, incluindo convênios, parcerias e programas de intercâmbio com universidades israelenses, presentes em muitos institutos na USP. Para Charbel, isso significa que o dinheiro público brasileiro está sendo gasto em conivência a violações de direitos humanos. “Neste momento que a universidade está vivendo, de recursos escassos, para que vamos usar esse dinheiro? Que tipo de conhecimento nós queremos produzir?”, questiona.

E é aqui que o assunto fica mais complicado. Embora Thom Yorke e Roger Waters possam concordar em seu repúdio às ações do Estado israelense, o boicote não faz todo esse sentido para todo o mundo. Yorke pensa que deixar de fazer um show em Israel não gera tanto impacto ao governo quanto a seus fãs israelenses, e não entende por que boicotar um país que infringe direitos humanos e não ter essa postura com tantos outros que fazem o mesmo. A essas questões, Charbel tem suas respostas. Contudo, outras são possíveis, e três acadêmicos da USP com visões distintas as apresentaram ao JC: Marta Topel, docente na área de Hebraico da FFLCH; Daniel Douek, graduado em Ciências Sociais e pós-graduado no programa de Estudos Judaicos e Árabes, além de colaborador do Instituto Brasil-Israel; e Natália Calfat, doutoranda em Ciência Política.

“Por que boicotar Israel e não outros países?” Se essa foi sua segunda dúvida, leitor, você não está sozinho. O fato é que muitos outros conflitos e miríade de opressões maiores e menores às de Israel existem ao redor do mundo. Então, o que torna esse caso especial? Para Topel, a falta de atenção dada a outras situações é preocupante e injusta. Para Calfat, é apenas natural: “a questão Israel-Palestina é internacional desde sempre”, argumenta. “Israel foi fundado pelas próprias Nações Unidas e é uma temática internacional desde a Declaração de Balfour” (carta que fez 100 anos em novembro e que expressou o apoio do governo britânico pela criação de um “lar nacional para o povo judeu na Palestina”).

Já Charbel enxerga que a situação é diferenciada, uma vez que os boicotes a Israel são uma proposta de ação e movimento organizados, que simplesmente não existem na mesma dimensão em outros casos no mundo, nos quais outras alternativas para resolução ainda estão sendo colocadas em prática. “Esse argumento é utilizado por quem não quer fazer a mudança”, critica, reiterando também que existe um chamado da sociedade palestina que precisa ser escutado.

“Por que boicotar?” O próprio método do boicote é, talvez, o maior ponto de contenda no debate todo. O BDS traça frequentemente um paralelo da situação de Israel com a da África do Sul em apartheid, e se inspira no papel que os boicotes tiveram em mudar essa conjuntura. “Foi um dos pilares mais importantes da mobilização na África do Sul”, defende Charbel. Todavia, nem essa perspectiva histórica está livre de questionamentos. Douek acredita que a comparação feita à África do Sul, embora plausível, deve ser cautelosa, e que por vezes é usada de forma enviesada. “Me parece mais uma bandeira de militância política, que tem como objetivo criar um diagnóstico para vender um remédio: a campanha de boicotes”, comenta. Para ele, a analogia evoca um exemplo bem-sucedido de boicote no imaginário popular, e apaga outros motivos ao fim do apartheid na África do Sul. “Simbolicamente, a África do Sul enfrentou uma campanha e, em seguida, o apartheid deixou de existir. Para alguns, uma coisa gerou a outra. Mas não é porque B aconteceu depois de A que resultou em C”, julga.

O que Douek, Topel e Calfat colocam em xeque é a efetividade do método, ainda que também concordem com quase todas as reivindicações do BDS (com ressalvas à terceira). Topel teme que os boicotes possam piorar a situação, acirrando o maniqueísmo do conflito. Sobre boicotes a acadêmicos e artistas, comenta: “grande parte dos acadêmicos israelenses, principalmente os das Ciências Humanas, se identificam com a esquerda. Em vez de se aliar àqueles que fazem uma autocrítica em Israel, você os condena. Então, os condenam a direita de Israel e os condenam quem está fora de Israel. É uma situação muito difícil”. Douek ecoa essa preocupação: “eu não endosso o BDS pelo isolamento dos setores progressistas. E pior: o fortalecimento de grupos conservadores e extremistas dentro da sociedade israelense”.

Entretanto, onde eles enxergam isolamento, Charbel vê união e um ângulo pedagógico. Ele acredita na capacidade do movimento de unir a oposição israelense. “O boicote cultural, do jeito que é feito no nosso movimento – não contra indivíduos, mas contra vínculos institucionais – dá força para os israelenses”, defende. “Essas pessoas têm suas vozes suprimidas todos os dias. Todo esse movimento de boicote trouxe as pessoas juntas numa co-resistência”. Parte do apelo do BDS é justamente a universalidade de suas demandas: eles só pedem pelo respeito aos direitos humanos, sem se preocupar com uma solução final ao conflito (de um ou dois Estados, por exemplo). É uma ideia simpática, mas Douek questiona sua integridade. “Outro problema é não definir claramente quando acaba. O que Israel precisa fazer de fato? O ponto dois [da igualdade de direitos] não é objetivo”. A conjuntura é tão complexa, que dificilmente haverá paz mesmo ao adotar-se uma solução de dois Estados, e a perspectiva de pôr um fim às violações de direitos humanos sem um acordo como esse é mais do que improvável.

Acima de tudo, é difícil dizer se, ao longo de 12 anos, os boicotes têm surtido algum resultado prático no sentido de alcançar seus objetivos. Charbel percebe que o governo israelense tem sido impactado de alguma forma, devido a suas movimentações contra o BDS, e encara isso com otimismo. Calfat, no entanto, não consegue ter essa certeza: “penso se a extrema-direita israelense está sendo afetada pelo BDS, e me parece que não. Me parece que os assentamentos só cresceram e que, apesar da condenação internacional, de alguma forma, Israel continua com essa política”. Para ela, o movimento merece um momento de autocrítica e reestruturação, de modo a atingir mais efetivamente os tomadores de decisão e formadores de opinião, mudando a face das lideranças políticas israelenses, as quais, por hora, seguem pela direita conservadora.