Três olhares paralelos sobre Mia Couto

Autor africano esteve em São Paulo falando sobre confluências culturais, literárias e pessoais

Por Daniel Medina

O escritor moçambicano Mia Couto esteve no campus da USP na zona leste em abril. Foto: Natália Dourado | Arte: Daniel Medina

Mia Couto visitou o campus da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) no último dia 12, a convite da

Companhia das Letras, da LiteraSampa e do Programa de Pós-Graduação em Turismo (PPGTur), com auxílio de representantes do Cursinho Popular da EACH. Conversou a respeito de sua obra, suas origens e as relações culturais entre Moçambique e Brasil.

Se entendermos por cultura todo o conjunto de valores éticos e comportamentais que moldam uma sociedade, cujos membros partilham crenças, usos, costumes e ideais, então a identidade é uma espécie de quadro de referência que torna os seres humanos aquilo que são, aquilo que os define, enquanto pertencentes a esta ou àquela comunidade de indivíduos.

Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras, mas só há duas nações – a dos vivos e dos mortos (de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, de Mia Couto)

Os textos de Mia Couto denunciam, cumprindo o papel acima citado de construção e sobretudo reconstrução de identidade, o despertar da consciência dos cidadãos moçambicanos, retratando a realidade cotidiana do país e dos indivíduos, com uma lúcida visão política.

Couto é moçambicano, traço presente em seus escritos. No Brasil, demonstrou grande apreço pelo país e relacionou a colonização enquanto elemento central da construção das duas nações: disse visualizar a África no Brasil, e criou um paralelo com a necessidade da sua construção identitária enquanto africano, daí a essencialidade da identidade na sua literatura.

Abordar a questão da identidade cultural na sociedade colonial pressupõe falar do homem ou do sujeito que ali se encontrava, isto é, do homem branco, europeu, e do homem negro, africano. Portanto de sujeitos com culturas e identidades díspares: o colonizador português e o colonizado africano.

Na palestra em São Paulo, Mia abordou também a importância da língua enquanto elo cultural e a forma como, no Brasil, a população se apropriou dela de maneira singular, algo que, inicialmente, seria uma imposição do colonizador. Sua conexão com a língua portuguesa a partir de composições brasileiras o ajudaram a apropriar-se dela de forma diferente.

Nascemos e choramos. A nossa língua materna não é a palavra. O choro é o nosso primeiro idioma (de O outro pé da sereia)

“Desta vez, realmente pensei que não poderia vir. E eu vim porque fui até lá, mesmo meus amigos me dizendo para não ir. Me diziam: não venha, porque é tão triste, você só vai chorar. Mas fui, mesmo que fosse para chorar, é muito mais produtivo do que a gente pensa”. Couto ainda comentou sobre as comparações entre os dois países: “Um jovem escritor que publica em Minas Gerais me disse: não tenhas dúvida, vai ao Brasil, que ele precisa de um abraço. E de fato, repensei, já há uma tentação de comparar tristeza, a impressão que nós sempre merecemos um abraço mais que os outros, mas talvez isso eternize esse sentimento de vítima que não devemos ter”. Emociona-se. E continua: “Eles não estavam vencidos. E vi que o Brasil também precisava de um abraço, não meu, mas dos moçambicanos, porque aconteceu Brumadinho, Mariana e há uma sensação de tristeza”.

Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a terra se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia do sonho. (de Terra Sonâmbula de Mia Couto)

Ao ser perguntado sobre suas motivações para a escrita, Mia destacou o peso da sua origem. Embora também dissesse que se tratava de uma das perguntas mais difíceis de responder. “Meus pais eram imigrantes, e não podiam voltar por uma razão política. Eu escutava essas histórias deles, a paixão com que contavam sua própria história. Como se escutasse a terra da qual eles falavam, essa viagem que faziam”.

No retrato da realidade a prosa coutiana navega por vários assuntos que, direta ou indiretamente, assolam seu país: o consumismo da elite moçambicana, o desemprego crônico, os deslocados da guerra e da seca a incharem os bairros de caniços na periferia urbana, a corrupção, o conflito entre espaços urbanos e rurais, o conflito idiomático entre a língua portuguesa, a língua oficial do Estado moçambicano, e as várias línguas nacionais a conviverem no mesmo espaço, as querelas políticas entre a FRELIMO (partido atualmente no governo) e a RENAMO (partido da oposição).

“O mundo foi feito para nos anular” disse o escritor a três auditórios lotados na EACH: “Todos os dias nos dizem que somos só mais um. E quando um livro consegue falar: tu existes, e vou contar uma história sobre ti. Quando um autor atinge esse sentimento de presença, esse poder a literatura tem que ter. Está por trás de tudo”.

A guerra é uma parteira: das entranhas do mundo faz emergir um outro mundo. Não o faz por cólera nem por qualquer sentimento. É a sua profissão: mergulha as mãos no Tempo, com a altivez de um peixe que pensa que ele é que faz despontar o mar. (de Mulheres de Cinza).

 

OTINTA, Jorge de Nascimento Nonato. Mia Couto: memória e identidade em ‘Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra’. 2008. Dissertação (Mestrado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. doi:10.11606/D.8.2008.tde-01092008-160730. Acesso em: 2019-04-30.

SOUZA, Louize Gabriela Silva de. Mia Couto: por uma pedagogia da doce ira. 2014. 108f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014.