As entregas podem parar, a luta não

Entregadores de aplicativo fazem greve expondo a precarização da categoria e exigem melhores condições de trabalho

Por Maria Laura López e Pedro Ezequiel

Colagem feita por Maria Laura López/Jornal do Campus, a partir das fotos de Bruno Kelly, Nelson Almeida, Pierre Rosa e John Vizcaino

Entre uma entrega e outra, Paulo Lima — ou Galo, como ficou mais conhecido — tenta responder os inúmeros telefonemas e mensagens que recebe de jornalistas ao longo do dia. Como criador do Entregadores Antifascistas, movimento de entregadores por melhores condições de trabalho, ele esteve na linha de frente da greve realizada no dia 1º de julho. Mas, sua popularidade vem desde março, quando um vídeo de desabafo, que fez sobre a absurda rotina de trabalho como entregador, viralizou e fez dele o rosto dessa categoria. 

Em uma breve conversa, Galo, que não trabalha mais para aplicativos, falou sobre o rumo que o debate tomou desde esse primeiro vídeo. “Sinto que valeu a pena, e que os companheiros e companheiras estão entendendo, pouco a pouco, a necessidade de nos unirmos e recuperarmos nossos direitos”, afirmou ele. 

Reflexo disso é a próxima greve marcada para o dia 14 de julho, que dará sequência ao chamado Breque dos Apps — como ficou conhecida a movimentação. Marcado para terça-feira, o ato continuará reivindicando o fim dos bloqueios sem justificativas coerentes, a suspensão do esquema de pontuação, que abaixa a nota dos entregadores que recusam corridas, e melhores ações dos aplicativos para garantir a segurança dos trabalhadores na pandemia.Mas a principal demanda continua sendo a do estabelecimento de uma taxa mínima por corrida que garanta valores maiores do que os disponíveis nos apps.

Como se o trabalho dos entregadores que estão constantemente na chuva, no sol e no trânsito não fosse difícil o suficiente, a pandemia piorou ainda mais a situação. Para além do risco de pegar a doença, eles passaram a receber menos e, consequentemente, a trabalhar mais — como aponta a pesquisa feita pelo Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp. 

Isso, porque o número de entregadores do Rappi, Ifood, UberEats e Loggi cresceu junto com o aumento do desemprego formal. Os entregadores explicam que embora a demanda pelo serviço também tenha aumentado na quarentena, isso não significou um aumento suficiente para cobrir a enorme quantidade de mão de obra. Com menos ofertas e taxas de entrega inalteradas é impossível manter a mesma renda ou rotina. Por isso, eles exigem um pagamento mais justo e padronizado entre os aplicativos.

Assim, contra a precarização da categoria, as paralisações também exigem o cumprimento da lei por parte dos aplicativos. “As leis municipais 14.491, que regulamenta a atividade do transporte de entrega, e 12.009, que dispõe sobre regras de segurança dos serviços de transporte remunerado de mercadorias em motos, precisam ser seguidas”, afirma Gerson Silva Cunha, presidente interino do Sindicato dos Mensageiros, Motociclistas, Ciclistas e Mototaxistas Intermunicipais do estado de São Paulo (SindimotoSP).

Um dos objetivos da manifestação do dia primeiro de julho era pressionar o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) pelo prosseguimento de dois processos que correm em segunda instância envolvendo os apps Loggi e IFood — uma audiência de conciliação entre o sindicato e aplicativos está marcada para o dia 14 de julho, às 16 horas, no TRT. No primeiro, a empresa teve parecer desfavorável, sendo obrigada a reconhecer vínculos empregatícios e pagar R$ 30 milhões por indenizações. Mas, a decisão foi suspensa por uma liminar até que seja votada por uma nova turma do TRT. Já no segundo caso, a Justiça negou o vínculo entre Ifood e entregadores. O Ministério Público do Trabalho recorreu da decisão. 

De acordo com o sindicato, existem mais de nove ações civis aguardando análise da Justiça por conta da pandemia. Para o Sindimoto, o ideal seria “transformar a atividade em CLT”, diz Gerson, se referindo às Leis Trabalhistas que regem quem exerce função com carteira assinada pelo empregador.

A greve dos entregadores de aplicativo, ocorrida no dia 1º de julho, teve aderência em diversos estados brasileiros. Na capital paulista, as manifestações aconteceram em diferentes pontos da cidade. Mas, a principal foi a liderada pelo SindimotoSP que começou na sede do sindicato e foi para o 2º Tribunal Regional do Trabalho, onde os organizadores contaram cerca de 3 mil motociclistas.

Na sequência, o movimento seguiu para a Avenida Paulista onde somou-se a outros e chegou a ter 5 mil motoboys, sem contar as dezenas de bikers — entregadores que usam bicicletas. A manifestação se encerrou por volta das 16h mas a paralisação foi mantida durante todo o dia e teve apoio massivo dos usuários, que ajudaram a divulgar a demanda dos trabalhadores nas redes sociais levantando as hashtags #BrequedosApps e #1diasemApp.

Quem sente na pele e nas duas rodas

Morena Di Bernadi é uma das poucas entregadoras que atuam na categoria, segundo ela mesma percebe com sua experiência. De acordo com o SindimotoSP, são cerca de 280 mil entregadores na região de São Paulo. A cada mil entregadores, há cinco entregadoras.

Desde muito nova, Morena já sabia que a moto era sua paixão. E mais: uma profissão que ela se enche de orgulho ao falar.O primeiro contato com o veículo antes das entregas era a garupa do irmão, motoboy de uma pizzaria. A princípio, seu plano era ser jogadora de futebol. “Conforme fui ficando mais velha e com conta para pagar, comecei a fazer para ganhar um extra e gostei muito”, conta ela.

Mulheres, como Morena Di Bernadi, são apenas 0,05% dos entregadores. Foto: Arquivo Pessoal

Na garupa do seu irmão, ela se imaginava cruzando avenidas importantes da capital. Quando atingiu seus 19 anos, tirou a habilitação e a começou a fazer entregas de cartão de crédito. Sobre as duas rodas, ela viu a mudança trazida com o boom dos aplicativos de entrega há alguns anos atrás. Morena havia começado com dois empregos fixos, um pela manhã e outro de noite. Com a chegada das plataformas, outra direção pôde ser vista pelo retrovisor.

“No começo era legal, agora deu uma enfraquecida porque tem muita gente desempregada. E deu uma oportunidade de pegar uma rendinha extra. Os aplicativos abriram oportunidade para quem não conhecia a área e está podendo conhecer”, conta. Mas o tom pessimista logo ganha a voz da motoqueira. “Só que foi entrando muita gente, pouca demanda de pedidos para todo mundo. E ficou nesse cenário que está hoje. A gente brigando com os aplicativos pelos valores porque como eles têm muita gente, a gente é só uma peça, eles vão abaixando os valores. Já vi aplicativo pagar três reais a corrida”.

A própria profissional sentiu na pele a desvalorização da sua categoria. Mas não só falando de valores embutidos em notas de dinheiro. Algo mais além: não ser vista como deveria. Morena sente um olhar de desprezo da maioria dos clientes. Em cada movimento. “Às vezes nem olha para sua cara, catam o pedido, saem correndo ou têm medo mesmo, até quando você vai estacionar a moto, eles fecham a porta, acham que vão roubar elas”.

Morena foi demitida dois dias antes de contar sua história para o Jornal do Campus. Ela trabalhava em uma distribuidora de bebidas que tinha seu próprio aplicativo interno de geolocalização. Era um dia de chuva e ela estava com o celular quebrado. Por causa disso, ela tirou um print do valor que deveria ser cobrado pela entrega. Quando chegou no destino, ela pegou a máquina de cartões que havia enrolado em um papel para não molhar. Ela também pegou o celular e deu zoom no print com o valor. A cliente denunciou Morena por achar que ela estava clonando o cartão.

“Meu patrão ficou com medo dela denunciar e processar e ele ser prejudicado. Ele me mandou embora com base na denúncia da mulher, sem nenhum tipo de prova”, contou. Antes, quando ainda estava neste emprego noturno, Morena usava seu tempo livre pela manhã para estudar marketing digital.

O episódio é só mais um na longa lista de constrangimentos a que os entregadores são submetidos. Entregas de aparelho celular em que o produto é substituído por uma pedra e o entregador nem sabe, pedidos de restaurante em que falta um refrigerante e outras situações que recaem sobre quem está levando. Não em quem fez. 

“É muito preconceito . É uma área que eu faço por paixão, cara. Eu faço porque eu gosto, porque se fosse colocar tudo na mesa, eu não faria, porque é barra pesada”.

Na conversa, o tom pessimista de Morena volta ao falar da expectativa por melhorias. Sua visão é de que se trata de um jogo de xadrez: quem está por detrás das empresas de aplicativos não vai ceder e aceitar as demandas dos entregadores  — “peças descartáveis”. 

“Eles não estão dispostos a pagar para uma melhoria no serviço. Elas [as empresas] não estão nem aí para a gente, o máximo que elas fazem é migalha e acham que estão fazendo muito”, sentencia com a voz. Mas Morena aponta razões para se lutar com unhas, dentes e capacetes. Acredita que o valor justo deve ser pago, como ressarcir o entregador e a entregadora que perder a viagem em casos de o cliente não ir pegar a encomenda e deixá-lo esperando. Também aponta que três reais numa corrida, como já viu, não deve se repetir.

“Eu cheguei a trabalhar em um aplicativo há um ano, [Glovo], ele nem está mais no Brasil, ele pagava valores justos. Pagava o quilômetro corrido, de onde você estivesse até o estabelecimento, pagava o tempo de espera… São essas coisas que os motociclistas e os motoboys hoje no Brasil querem”.

A startup espanhola Glovo encerrou suas atividades no Brasil em março de 2019, após um ano de operação no país. A empresa alegou que o mercado brasileiro era “extremamente competitivo”, o que demandaria mais investimentos de recursos pela empresa. 

Ser mulher na correria do dia a dia traz lá seus desafios segundo a entregadora: “para homem é, realmente, muito mais fácil. Para  mulher, é um pouco mais difícil”. Mas as fechadas do trânsito e da falta de melhorias dos aplicativos parecem recair sobre a profissão.  “E assim, nessa correria, nessa pauleira. Nosso pensamento em cima da moto é melhorar de vida, dar o melhor para nossa família… E a vida passa por nossos olhos várias vezes.”

E ainda assim, correr nas avenidas de São Paulo traz para Morena uma liberdade com a qual ela se autoafirma e se reconhece. “Paixão por duas rodas vai mais do que trampo, vai mais do que ficar em cima da moto. É um conjunto, sabe?”.

Entregadores de aplicativos reivindicam melhores condições de trabalho. Foto: Maria Laura López