A era dos vinte e poucos metros quadrados em São Paulo

A febre de studios em São Paulo revela distorções no adensamento previsto do Plano Diretor Estratégico de São Paulo, que chega às vésperas de sua revisão precisando enfrentar, entre outras questões, a sobrevalorização dos apartamentos em regiões e a perda de oferta cultural da cidade em detrimento de novos projetos.

por Jorge Fofano

A era dos vinte e poucos metros quadrados em São Paulo

Um de três lançamentos que ficam na mesma quadra na Rua Frei Caneca. Imagem: Jorge Fofano/JC

Cerca de um mês atrás, a TV Globo veiculou uma matéria que comoveu muitos paulistanos que frequentam a rua Augusta e suas imediações: o anexo do Itaú Espaço de Cinema, tradicionalmente conhecido por sua curadoria menos comercial, será fechado e demolido em razão da compra do terreno pela incorporadora Vila 11.

O cinema está lá desde 1995, conta com duas salas de exibição, salas de curso e o Café Fellini. Os vizinhos restaurante La Sabrosa e o Up Bar também compartilharão o destino do Espaço Itaú. Os três estabelecimentos têm até o fim de 2022 para encerrar suas atividades, quando as máquinas devem começar o trabalho de demolição dos velhos casarões que abrigam o bar, o restaurante e o cinema.

O novo prédio da Vila 11 acrescenta uma longa lista de empreendimentos residenciais, verticalizados, erguidos no baixo Augusta desde 2014, expulsando pouco a pouco os bares e baladas que deram fama à região. Porém, essa mudança de perfil urbanístico de uma das ruas mais conhecidas da cidade não é um evento singular. O padrão de construção de modernos empreendimentos se repete ao largo da avenida Rebouças, no bairro de Pinheiros, nas ruas situadas entre a avenida Celso Garcia e a Radial Leste, apelidado de “eixo platina”, na avenida Heitor Penteado e todas as demais áreas de uma mancha contígua aos eixos de transporte coletivo rotuladas como ZEUs, as Zonas Eixos de Estruturação de Transformação Urbana.

Demolição de casarão na av. Rebouças (ZEU) abre espaço para novo empreendimento. Imagem: Jorge Fofano/JC

Zonas Eixos de Estruturação de Transformação Urbana

As zonas, delimitadas pelo Plano Diretor Estratégico (PDE) assinado em 2014, possuem alto potencial construtivo e correspondem a 18% da área urbana da cidade. Sua existência está em acordo com o objetivo do PDE de tornar as regiões próximas à malha metroviária mais densamente povoadas.

Para cumprir a meta proposta, o Plano propõe que as ZEUs disponham de um coeficiente de aproveitamento — número que, ultiplicado pela área do lote, indica a quantidade máxima de metros quadrados que podem ser construídos em um espaço — igual a 4.  Comparativamente, o coeficiente de aproveitamento de uma ZEU é o dobro daquele para Zonas Mistas (ZM), que cobrem a maior parte de São Paulo. O maior aproveitamento do lote, implica, na prática, uma verticalização das edificações.  

Segundo o relator do PDE e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Nabil Bonduki, a verticalização em torno dos transportes coletivos de massa não pode ser considerado, em si, um mau fenômeno: “a ausência de formas de adensamento próximas aos investimentos públicos em transporte coletivo é também uma forma de não cumprir com a função social da cidade”, arremata.

Nabil também defende a importância socioambiental de mais pessoas  morando em torno dos modais coletivos, porque reduz os deslocamentos individuais e diminui, consequentemente, a emissão de poluentes.

Apesar do adensamento estar sendo cumprido em alguma extensão, a ferrenha competição de incorporadoras por terrenos nas ZEUs gerou uma escalada vertiginosa dos preços ofertados pelos apartamentos localizados, principalmente, no centro expandido.

Uma pesquisa rápida em um site de venda de imóveis mostra que um apartamento de 20m2 na Vila Mariana, o bairro mais procurado para aluguel em São Paulo em 2021 de acordo com pesquisa da QuintoAndar,  não sai por menos que R$ 280 mil reais;  os aluguéis também estão se tornando mais caros nestas regiões.

O professor usa o termo “demanda demográfica” para explicar como os apartamentos das ZEUs paulistanas acabaram nas mãos daqueles que conseguem pagar mais caro. Segundo Nabil, filhos de famílias que residem em regiões tradicionalmente nobres da cidade como Jardins, Itaim e Morumbi, ao sair da casa dos pais, tendem a buscar moradia em bairros contíguos que reproduzrm um padrão de vida elevado e, ao mesmo tempo, sejam supridos de fácil à malha de transportes coletivo.

Sendo a população de alta renda em São Paulo algo em torno de um milhão de pessoas, como informa  o professor, a demanda que essas pessoas exercem não passa despercebido pelas incorporadoras, que acabam exercendo maior pressão pela liberação de mais terrenos destinados à alta renda nas ZEUs.

Essa exigência vem de encontro aos limites atuais definidos pelo parâmetro chamado Cota Parte Máxima, que regula a quantidade de unidades habitacionais segundo unidade de área do terreno. Nas ZEUs, esse parâmetro é igual a 20m2. Ao multiplicá-lo pelo coeficiente de 4, chega-se ao tamanho médio de 80m2., uma metragem considerada baixa para empreendimentos de maior renda.

Para contornar a questão e comportar a demanda por apartamentos maiores, os empreendimentos se tornam “mistos”: vendem uma parcela, geralmente maior, de unidades com áreas menores, os studios, e outra parcela de apartamentos mais avantajados para compradores de maior poder aquisitivo.

“Localizado no coração do bairro Bela Vista, a unidade da Vila 11 na rua Barata Ribeiro conta com apartamentos tipo Studio, 1 e 2  dormitórios”, descreve o anúncio do site da incorporadora responsável pelo projeto que substituirá os casarões da rua Antônio Carlos com a rua Augusta. Na seção de vantagens do condomínio consta piscina no rooftop, um salão gourmet e vagas de garagem opcionais.

A propaganda da Vila 11 está repleta de palavras-chave que refletem o espírito de época do mercado imobiliário: “studio”, “vagas de garagem opcionais”, “apartamentos exclusivos para alugar”. Por conta das diretrizes de ocupação das ZEUs, os apartamentos de até 45m2 despontaram como modelo hegemônico no setor.

De acordo com a Pesquisa do Mercado Imobiliário (PMI) da Secovi/SP, entidade sindical que representa o setor imobiliário, em abril de 2022 foram entregues 3.010 unidades, lançadas outras 1.644 e ofertadas quase 29 mil. Em 2021, 7 a cada 10 lançamentos na cidade de São Paulo ficaram na faixa de área de 30 a 45m2, aponta a entidade.

A linha de apartamentos compactos tem sido a ponta de lança do mercado imobiliário para introduzir o modelo multifamily, no qual todas as unidades são exclusivamente destinadas à locação. A própria Vila 11 é uma das melhores posicionadas nesse nicho: desde que entrou no mercado em 2017, a incorporadora, que representa o bilionário fundo de investimentos Evergreen, comprou mais de 15 terrenos para construção de unidades muti-family.

Lançamento do tipo multi family sob administração da incorporadora Vila 11. Foto: Jorge Fofano/JC

Os lançamentos incluídos nessa categoria ressaltam a presença de espaços comunitários como salas de coworking, lavanderia, serviços de aluguel de carros e bicicletas, além de outras comodidades ao cliente que visam tornar o ato de morar uma “experiência”.

Se por um lado a linha multifamily consegue dialogar com os preceitos da cultura de compartilhamento, que regem os hábitos de consumo das gerações mais jovens, por outro lado, ela reflete a crescente inacessibilidade da aquisição de imóveis. Em meio à alta taxa de juros, que compromete a capacidade de consumo, e a persistente sobrevalorização de imóveis nas áreas centrais da cidade, o até pouco tempo cultuado sonho da casa própria tem se tornado cada vez mais utópico. De todo modo, do ponto de vista das construtoras e dos fundos de investimento que as patrocinam, a alienação de propriedades das mãos de pessoas físicas é vista como uma oportunidade de negócio bastante atraente.

O fenômeno não fica apenas em São Paulo. Verifica-se também no Rio de Janeiro e em grandes metrópoles mundiais como Hong Kong, Londres, Montreal e Nova York, onde os terrenos centrais têm se tornado vertiginosamente mais caros. Nos Estados Unidos, em particular, o movimento de compra de imóveis por fundos de investimento para entrada no mercado de aluguéis tem adicionado mais lenha na fogueira do debate sobre a crise de habitação vigente no país.

Os compactos de última geração e a perda de vida nas ruas

Como no caso do Itaú Espaço de Cinema e vizinhos, a compra de terrenos ligados ao lazer e a cultura para a construção de prédios residenciais vem se manifestando com grande força em São Paulo. Perguntado sobre as maneiras que o Plano Diretor possui de proteger o patrimônio cultural da cidade, Bonduki faz, primeiro, uma diferenciação: “o Plano Diretor não pode ser responsabilizado pela falta de ação das gestões municipais. Ele é o instrumento, não o ator”. Nabil prossegue dizendo que, se fosse do desejo da prefeitura, o lote onde está o Itaú Espaço de Cinema – e, para todos os efeitos, qualquer área de interesse cultural da cidade –  poderia ser demarcado como uma Zona Especial de Preservação Cultural (ZEPEC).

A transformação de uma área em uma ZEPEC não impede que o empreendimento seja construído, mas obriga a incorporadora a incluir inalterado o espaço de interesse cultural no projeto final. Outro aspecto importante do PDE, diz Nabil, é “o estímulo à criação de fachadas ativas”. Neste caso da Augusta, a incorporadora deveria dispensar o recuo frontal do prédio, mantendo os comércios que funcionam no térreo e também a paisagem da rua”, explica. A incorporadora Vila 11 ainda não deu informações do projeto que será desenvolvido no local.

Outros prédios na própria rua Augusta mostram a fragilidade com que o poder municipal faz cumprir as determinações do Plano Diretor. Desde prédios que avançam o recuo sobre a rua, estreitando a passagem de pedestres, até outros que constroem muros com arames farpados, as últimas gerações de apartamentos e a valorização imobiliária esvaziam a vida da rua e tornam as calçadas menos seguras. Nos últimos meses, casos de furtos e roubos violentos marcam o quotidiano de frequentadores da Augusta e região.
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Segundo Nabil, além da falta de fiscalização, pesa na fabricação destes empreendimentos “desenquadrados” ao ideal de uma cidade mais pulsante, uma visão ainda arcaica das incorporadoras, que pouco atuam para integrar de maneira mais eficaz as edificações ao tecido vivo urbano. A questão da perda de oferta cultural face ao predantismo imobiliário é notada por Silvia Ferraro (PSOL), vereadora pela Bancada Feminista: “há uma contradição no sentido de que para vender estes apartamentos [construídos em locais de interesse cultural], eles vendem a promessa de que o centro da cidade tem cultura, lazer, acesso à museus e demais serviços”.

Para Silvia, a ausência de políticas públicas de zelo e fomento à vida cultural da cidade caracteriza uma gestão municipal sem assinatura própria e reflete também o alinhamento do prefeito, Ricardo Nunes (MDB), com os interesses do mercado imobiliário. Desde o início da legislatura de 2022, Nunes e a base governista na Câmara dos Vereadores têm priorizado diversos temas da pauta urbanística que resvalam no Plano Diretor. Entre eles está a flexibilização do aumento do gabarito (altura máxima) dos prédios em miolos de bairro, hoje fixado em 8 andares, e aumento da vaga de garagens. Ambas pautas são de interesse central do mercado imobiliário.

Casas adjacentes à famosa escadaria das bailarinas, na rua Alves Guimarães, em Pinheiros, são interditadas para demolição. Foto: Jorge Fofano/JC

Revisão do PDE pode ser feita no próximo mês

Originalmente marcada para julho de 2021, a revisão do Plano Diretor Estratégico foi paralisada após liminar concedida pela justiça à pedido da Defensoria Pública da União. Como recapitula a vereadora Ferraro, a plataforma virtual disponibilizada para os debates carecia de mecanismos de acessibilidade à população com deficiência, prejudicando a participação universal da sociedade civil; no diagnóstico de Sílvia, o pouco cuidado com esta questão sugere a vontade da gestão de Nunes de tratar da revisão de maneira atropelada.

Os vereadores devem começar os trabalhos no mês de julho, quando expira a liminar. Como dispõe a legislação, a revisão do PDE é obrigatória e deve ser feita de oito em oito anos.