Preocupações crescentes com o alcance das teorias da conspiração também atingem a Universidade
por Gabriel Gama e Mariana Carneiro
Foto: Gabriel Gama/JC
Há quem garanta que o primeiro passo de Neil Armstrong em solo lunar, transmitido ao vivo pela televisão para mais de 600 milhões de espectadores em 1969, não passe de uma caprichosa produção em estúdio do cineasta Stanley Kubrick. Não é difícil encontrar, também, quem refute veementemente a eficácia das vacinas. O repúdio à história e à ciência, característica presente nas teorias da conspiração, faz parte de um fenômeno social mais amplo e com implicações antidemocráticas: o negacionismo.
“Sempre existiram mitos e inverdades sobre fatos históricos, mas o negacionismo não é apenas uma ‘opinião divergente’: ele reúne livros, artigos, postagens em redes sociais e apoio de intelectuais para promover o assassinato da memória”, expõe Sean Purdy, professor de História da América na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Quem vê de fora pode pensar que a Universidade é um espaço onde o negacionismo ainda não chegou, já que a instituição lidera a produção científica no Brasil e é uma referência em diversas áreas do conhecimento. Porém, situações polêmicas envolvendo estudantes, professores e frequentadores da Cidade Universitária são menos incomuns do que parecem.
Casos na USP
Purdy relembra um episódio de 2012 que lhe rendeu dois processos judiciais — o professor escreveu um artigo de denúncia contra um discente da Faculdade de Direito da USP, que negou o holocausto em seu Trabalho de Conclusão de Curso. “Totalmente mentiroso e equivocado, o TCC recebeu nota 10 e foi publicado em Portugal como livro”, explica. “O aluno me processou no direito civil e no criminal, mas perdeu as duas ações. E eu consegui destacar, na Universidade, a importância de denunciar e criticar o negacionismo histórico”.
Sean Purdy, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Foto: Gabriel Gama/JC
Mais recentemente, o virologista Paolo Zanotto, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB), passou a defender o tratamento precoce contra a covid-19, comprovadamente ineficaz, e se alinhou ao governo Bolsonaro. Zanotto foi investigado na CPI da Pandemia no Senado Federal em 2021, por suspeitas de integrar um grupo de médicos que aconselhava o presidente a não comprar vacinas contra o coronavírus, o chamado “gabinete das sombras” — também integrado pela médica Nise Yamaguchi, formada pela USP. Em uma live de abril de 2021, Zanotto disse que havia um “entendimento muito interessante” entre o governo federal e a Prevent Senior, operadora de saúde suspeita de ocultar mortes de pacientes com covid-19 de um estudo que testava a eficácia da hidroxicloroquina contra a doença.
Alvo de protestos no próprio ICB, o virologista solicitou licença remunerada ao Instituto para atuar em uma universidade no Canadá por dois anos. Em 9 de junho de 2021, obteve autorização do ICB, mas sua saída foi negada por outra instância. Zanotto diz ser perseguido após sua atuação no Executivo vir à tona durante a CPI.
Movimentos conspiracionistas ganharam novas dimensões no ambiente digital, que facilita a disseminação de informações sem embasamento científico. “As redes sociais criaram bolhas intransponíveis, a partir de uma linguagem de adesão a valores inquestionáveis, sejam de natureza ideológica ou religiosa”, analisa Marcos Napolitano, que leciona a disciplina História do Brasil Independente na FFLCH. “Estas bolhas criam um sentimento de comunidade canalizado por alguns estrategistas, sobretudo ligados à extrema-direita”.
Outro caso recente chamou atenção na Cidade Universitária: em um cartaz colocado junto a uma bandeira do Brasil e próximo ao Restaurante Universitário Central, um homem diz ter feito “a mais revolucionária das descobertas científicas” ao provar que a Terra “é o centro do Universo” e se dispõe a conversar com os interessados em conhecer a suposta teoria.
Quando contatado, o homem, que não será identificado, pede a ajuda da comunidade USP para demonstrar o que alega ter descoberto e diz que o geocentrismo, teoria desmentida pela ciência há séculos, é irrefutável e incontestável. Diz sofrer rejeição na Universidade e quer mostrar o “verdadeiro conhecimento antigo: a verdade é absoluta e demonstrável”.
Luis Galeão, professor de psicologia social no Instituto de Psicologia, comenta que o cartaz não deve ter alcançado tantas pessoas quanto teria se fosse publicado nas redes sociais, embora seja uma tentativa de demonizar a USP e uma armadilha para questionar o respeito às diferenças no campus.
Luis Galeão, do Instituto de Psicologia. Foto: Gabriel Gama/JC
“O que é ‘respeitar as diferenças’? É o respeito no sentido de expressão, de identificar diferentes pontos de vista, mas não do conhecimento. Não podemos igualar o conhecimento científico àquele que não é científico. A Universidade é muito plural, e mais importante do que [avaliar] se podemos ou não expor [a comunidade USP] a esses materiais é descobrir como as pessoas que circulam na USP entendem e leem aquilo”, explica.
Galeão destaca a organização do discurso do cartaz negacionista, que capta elementos com aparência de provas, mas sem quaisquer dados ou fundamentação. “Perto de onde o cartaz foi colocado temos o Relógio Solar da USP, que por si só já desmente a teoria geocêntrica”, diz o professor, em referência à escultura localizada na Cidade Universitária que indica as horas conforme a posição do Sol. “Assim fica difícil sustentar essa tese”.
“Muitas vezes, as pessoas se sentem tão incertas na sociedade, com tanta incertezas, que buscam uma certeza que a ciência não pode dar, que é absoluta.”
Luis Galeão, professor de psicologia social
Em sua experiência como docente, Galeão diz que muitos colegas são atacados em palestras e grupos de discussão por pessoas que negam a liberdade de a Universidade pesquisar certos assuntos, como sexualidade e gênero. “O principal problema na psicologia, por exemplo, é a distorção de textos religiosos para defender que a homossexualidade não é natural. A ciência não é uma verdade absoluta, mas ela também não tem abertura a todo discurso.”
Como a USP lida com o negacionismo?
Purdy diz que a Universidade é regida por princípios morais, que devem ser acionados. “Um professor concursado que é submetido ao código de ética da USP e atenta contra o Estado e a democracia tem que ser punido”.
“[O negacionismo] é uma preocupação crescente da Universidade, que tem uma função educadora, é um espaço de debate. Nossa função como orientadores, educadores e educandos é ter a cabeça aberta para dúvidas e buscar formas de respondê-las com produção de conhecimento”, comenta Galeão.
Relógio Solar da USP, que desmente teoria negacionista. Foto: Gabriel Gama/JC
Para Napolitano, são necessárias estratégias culturais, comunicacionais e educacionais que estimulem a formação da consciência das maiorias na direção de um pensamento crítico para enfrentar a desinformação e o conspiracionismo. “É preciso integrar esforços e aprofundar a conexão com a sociedade, pois os negacionistas querem disputar a opinião pública e se aproveitar da onda anti-política, anti-intelectual e anti-sistema que tomou conta de vários grupos sociais no Brasil”, diz o pesquisador.