Pesquisas da USP oferecem ao SUS tratamentos inovadores contra o câncer

Terapia celular e vacina terapêutica são exemplos de tratamentos com resultados iniciais, mas promissores

por Gabriele Koga e Guilherme Bento

Paulo Peregrino, de 61 anos, conviveu com o câncer por 13 anos até finalmente entrar em remissão. Por meio de um estudo desenvolvido pelas Faculdades de Medicina da USP de São Paulo (FMUSP) e de Ribeirão Preto, (FMRP-USP), pelo Instituto Butantan e em parceria com o Hemocentro, o paciente teve acesso a um tratamento de terapia celular disponibilizado no país apenas no final de 2022 – e, ainda assim, por valores acima de R$ 2 milhões.

A terapia celular CAR-T utiliza células geneticamente modificadas para combater o câncer. O uso comercial foi liberado em 2018 nos Estados Unidos pela agência reguladora sanitária norte-americana, a Food and Drug Administration (FDA).

O sistema imunológico humano é composto, basicamente, por dois tipos de células especializadas: os linfócitos B e T. Enquanto o primeiro é responsável por produzir anticorpos, o segundo funciona como um “guarda” do organismo. Em um caso do tratamento realizado em Ribeirão Preto, em 2019, o paciente era portador avançado de um linfoma não-Hodgkin, um câncer sanguíneo que ocorre quando o corpo produz muitos linfócitos (um tipo de glóbulo braco) anormais.

O quadro era causado por linfócitos B doentes. Os pesquisadores, então, extraíram os linfócitos T de uma amostra de sangue do paciente para modificá-los geneticamente.

No laboratório, uma espécie de vírus sintético foi introduzido nestas células. Esse vírus é um vetor – ou seja, ele carrega no DNA a habilidade de reconhecer determinadas substâncias de interesse. Os linfócitos T modificados ganharam, a partir disso, um receptor que permitia o reconhecimento e o combate ao tumor. Tornaram-se, assim, células CAR-T.

Reintroduzidas no paciente, as CAR-T têm como alvo era uma proteína chamada CD-19. Como esta proteína está presente na membrana dos linfócitos B doentes, as células modificadas passaram a conseguir reconhecer e destruir as células cancerosas.

Por não ser um tipo de terapia simples, as células CAR-T exigem uma estrutura laboratorial complexa, certificada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e com boas práticas de produção. O tratamento exige também hospitais com capacidade para realizar transplantes de medula óssea, laboratórios de pesquisa avançada e suporte de tratamento intensivo. 

O principal problema da terapia celular CAR-T é o custo. Nos EUA, um tratamento completo pode chegar a custar US$ 1 milhão (cerca de R$ 4,8 milhões). 

Ao todo, 14 pacientes já foram tratados com células CAR-T com verbas da Fapesp e do CNPq. Todos os pacientes tiveram remissão de pelo menos 60% dos tumores e a recuperação foi na rede do Sistema Único de Saúde (SUS), segundo a Agência Brasil. Este tipo de terapia se encontra em fase experimental no país Os pacientes foram tratados de forma compassiva, isto é, seguindo decisão médica, quando o câncer está em estágio avançado e não há alternativas de terapia. 

Universidade e SUS

O SUS, maior sistema público de saúde do mundo, atende mais de 190 milhões de pessoas todos os anos no Brasil, de maneira integral e gratuita. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), ele é considerado referência internacional em diversas áreas, como vacinação, transplantes, doações de órgãos, de sangue e de leite materno. Devido à complexidade, o SUS é organizado em diferentes tipos de assistência à saúde e  níveis de atenção  “A gente divide o sistema em Atenção Primária à Saúde (APS), que existe nos postos de saúde, atenção secundária, como acontece no Hospital Universitário (HU), e atenção terciária, que é feita no Hospital das Clínicas (HC), tanto em São Paulo quanto em Ribeirão Preto, vinculado à Universidade”, explica Roger Chammas, coordenador do Centro de Estudos e Tecnologias Convergentes para Oncologia de Precisão, C2PO, da USP.

“No Hospital das Clínicas, buscamos entender a dinâmica do SUS para, então, propor inovações”, afirma o pesquisador. “Esses processos podem  estar relacionados a uma nova forma de diagnóstico, um aplicativo, uma maneira de acompanhar o paciente ou até tratá-lo de uma forma diferente.”

Para Chammas, é comum que pesquisas busquem recrutar voluntários, já que há uma oportunidade para que os pacientes do SUS tenham acesso a um tipo de tratamento antes que sejam concluídas e seus resultados  amplamente disponibilizados à população. “Isso é muito útil para gerar evidências que vão, em última análise, ser requeridas para o registro de um novo tratamento no nosso país”, conta. 

Como funciona uma pesquisa?

Há diferentes etapas em um estudo clínico para o desenvolvimento de medicamentos, vacinas e tratamentos. Segundo a Fiocruz, instituição nacional de pesquisa e desenvolvimento em ciências biológicas, e o Instituto Nacional de Câncer (INCA), o planejamento envolve um cronograma que pode durar anos até a sua conclusão, a depender dos objetivos, ajustes e investimentos da pesquisa.

O primeiro ciclo é conhecido como experimental ou pré-clínico. Antes de iniciar os testes em seres humanos, os pesquisadores realizam estudos para a concepção de uma inovação em saúde. Os testes preliminares acontecem em dois  modelos:  in vitro, que compreende ensaios realizados fora de um organismo vivo e envolve células, tecidos ou órgãos isolados; e in vivo, que conta com estudos realizados com organismos vivos, para demonstrar a segurança e o potencial da pesquisa em questão. “Nos estudos pré-clínicos, tenho diferentes estratégias e trabalhamos até provar um conceito. Isso pode gerar uma abordagem de um tipo, um protótipo, que poderá ser aplicado depois”, detalha Chammas.

Na sequência, ocorrem testes em animais que apresentam o problema de saúde em questão. É o caso de camundongos com tumores.  Neste processo são testadas as concentrações da molécula a partir da análise de quais delas produzem respostas contra a enfermidade. Posteriormente, um mamífero mais complexo, como um porco, é utilizado para confirmar as observações prévias. “Depois da prova de conceito, a gente começa a fazer os testes e, dependendo da abordagem, precisa ser realizado em uma ou duas espécies animais”, complementa o professor.

A próxima etapa da pesquisa inclui testes em maior escala para avaliar novas indicações e obtenção do registro sanitário na Anvisa. “É uma fase de vigilância, na qual observamos eventuais efeitos adversos na população fora do estudo”, pontua Chammas. “Se houver alguma ‘toxicidade’ que não tenha sido observada antes, ela é relatada e, se for necessário, o medicamento perde o seu registro.”

Frutos da pesquisa

A importância da pesquisa clínica neste cenário para um contexto público, segundo Henrique Fonseca, pesquisador da ARO, Academic Research Organization, Einstein e líder de estudos clínicos de vacinas, é abrir mais oportunidades no SUS para utilizar algo que já existe no sistema para outras pessoas com condições diferentes de saúde, ao conseguir aplicar medicamentos já existentes em tratamentos de diferentes doenças. Como exemplo, cita o estudo da aplicação da vacina da gripe na redução de infartos e AVC. 

Constatações como esta podem ser convertidas em políticas públicas. “Os resultados positivos são mostrados como recomendação para que o governo vacine a população de maior risco para doença cardiovascular”, ilustra o pesquisador. A Anvisa participa do processo fazendo com que o SUS utilize o que ele já tem em um espectro maior de possibilidades. 

Futuro

Ao JC, em um estudo que busca financiamento para iniciar a fase três, o professor José Barbuto, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB), afirma que uma vacina terapêutica para o câncer é desenvolvida no Departamento de Imunologia.

O pesquisador explica que a vacina terapêutica difere da vacina preventiva. A primeira é destinada a barrar a progressão de uma doença já instalada no organismo, enquanto a outra estimula o sistema imunitário a produzir proteção contra infecções no organismo.

Para Barbuto, o tratamento para o câncer é complexo, uma vez que existe o crescimento desordenado de células. Elas se dividem rapidamente e formam tumores, que podem invadir tecidos e órgãos. “O sistema imunológico deveria reconhecer o câncer e, por mecanismos de regulação, ele desliga isso. Com mais estudos, vieram grandes novidades”, destaca. “A gente consegue usar o sistema imunológico para tratar o câncer e essa descoberta foi prêmio Nobel de medicina, em 2018. Há uma manipulação do sistema imune que faz com que ele brigue contra o câncer”.

Vacina terapêutica contra o câncer aumenta sobrevida de pacientes contra o câncer. Foto: Guilherme Bentol/JC

O professor ressalta que existe um tipo de freio do nosso sistema imunológico, conhecido como “sistema de breques”. A tecnologia de suas pesquisas é baseada no trabalho vencedor do Nobel. Ao liberar os breques, as células de defesa do organismo conseguem atacar o tumor. Esse mecanismo auxilia as nossas próprias defesas a detectar o câncer e agredi-lo.

“O que eu faço é produzir células dendríticas, componentes do sistema imune, em laboratório. Oferecemos o tumor do paciente a ela e devolvemos essa célula, apontado o tumor como um problema para o sistema. Ao fazermos isso, compra-se a briga contra a doença”, explica.

Os resultados preliminares, em 35 pacientes na etapa clínica, são promissores. “A sobrevida esperada para pacientes com tumores é inferior a um ano e meio. Para alguns subtipos, essa expectativa duplicou e, para outros, quadruplicou. A resposta foi muito importante e convincente. Agora, nós estamos indo para a fase três. Foi um bom estudo, mas pequeno. Vamos ver muitos pacientes nas próximas etapas. Se a hipótese se confirmar, será fantástico”, afirma Barbuto.