Após 6 meses de investigação, e mais de 200 mil mortos, CPI da Pandemia aprova relatório final

7 senadores votaram a favor do parecer de Renan Calheiros, e 4 da base governista foram contra

 

por Theo Sales

Fotos: Edilson Rodrigues/Agência Senado

 

No dia 4 de fevereiro de 2021, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) protocolou um pedido de instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as ações e omissões do governo federal no combate à pandemia do coronavírus. Naquele dia, o Brasil registrou 1291 mortes causadas pela covid-19, acumulando um total de 228.833 mortes, segundo dados do consórcio de veículos de imprensa. Em 13 de abril, após determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, oficializou a instauração da CPI. Neste dia, mais 3687 pessoas morreram devido à covid-19, o que elevou o número de óbitos para 358.718. Após 6 meses de investigação, a CPI da Pandemia foi encerrada no dia 26 de outubro, dia em que o Brasil registrou mais 342 mortes, acumulando mais de 600 mil pessoas mortas pelo coronavírus. 

A comissão aprovou um relatório final de 1289 páginas, nas quais ela apresenta os resultados da investigação e pede o indiciamento de 80 pessoas responsáveis pela prática de diversos crimes durante a pandemia. Dentre os indiciados, está o presidente Jair Bolsonaro, acusado da prática de 9 infrações, desde crimes comuns, previstos no Código Penal, até crimes de responsabilidade e contra a humanidade. Além de Bolsonaro, outros membros do governo federal, como o atual ministro da Saúde Marcelo Queiroga, também foram acusados de infrações pela comissão. Parlamentares, médicos, servidores públicos, jornalistas, empresários e empresas também foram alvo de acusações. 

As investigações e o relatório da CPI contaram com a ajuda de especialistas que ajudaram na análise dos fatos e artigos apontados pela comissão. Helena Lobo da Costa participou de um grupo de juristas, junto a Miguel Reale Júnior, Sylvia Steiner e Alexandre Wunderlich, que colaboraram com os senadores. Em conversa com o JC, Helena conta que o grupo “examinou os principais fatos investigados pela CPI e indicou, em um parecer escrito, qual a classificação jurídica que tais fatos deveriam receber, ou seja, quais crimes estariam configurados a partir dos fatos investigados. O trabalho que fizemos foi, em grande medida, adotado pelo Relatório final da CPI”.

Após a conclusão e votação, o parecer final da CPI, escrito pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL), foi encaminhado para outros órgãos públicos, de acordo com suas competências. “A CPI tem seus poderes de atuação previstos na Constituição Federal e são, sobretudo, poderes de investigação”, explica a jurista Helena Lobo da Costa. Ela continua: “finalizada a investigação, a CPI encaminha todo o material colhido aos órgãos que têm legitimidade para propor as ações judiciais e jurídicas correspondentes”.

Da esquerda para a direita: Randolfe Rodrigues, vice-presidente da CPI; Omar Aziz, presidente da comissão e o relator Renan Calheiros. Foto: Roque de Sá/Agência Senado

 

Cópias do relatório foram entregues pelos próprios membros da comissão ao presidente do Senado Federal, à Câmara dos Deputados, à Polícia Federal, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao Ministério Público Federal (MPF), ao Tribunal de Contas da União (TCU), a ministérios públicos estaduais, à Procuradoria-Geral da República (PGR), à Defensoria Pública da União (DPU), ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Tribunal Penal Internacional (TPI). 

A votação do relatório manteve a balança presente ao longo da comissão: o G7, grupo de senadores que apontam os crimes do governo federal, votou a favor do parecer do relator, enquanto os 4 senadores governistas foram contrários. Eduardo Braga (MDB-AM), Renan Calheiros (MDB-AL), Tasso Jereissati (PSDB-CE), Otto Alencar (PSD-BA), Humberto Costa (PT-PE), Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e Omar Aziz (PSD-AM) aprovaram o relatório e Luis Carlos Heinze (PP-RS), Eduardo Girão (Podemos-CE), Marcos Rogério (DEM-RO) e Jorginho Melo (PL-SC) se manifestaram contrariamente. 

Senadores governistas em coletiva de imprensa. Da esquerda para a direita: Luis Carlos Heinze, Jorginho Melo, Marcos Rogério e Eduardo Girão. Foto: Agência Senado

 

Os crimes do presidente

Segundo o parecer da CPI da Pandemia, o presidente da República Jair Bolsonaro é responsável por 9 infrações no âmbito da pandemia da covid-19 no Brasil. Dentre os crimes comuns estão prevaricação, charlatanismo, epidemia com resultado morte, infração a medidas sanitárias preventivas, emprego irregular de verba pública, incitação ao crime e falsificação de documentos particulares, com base no Código Penal. Foi apontado também o cometimento de crimes de responsabilidade (violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo) e crimes contra a humanidade nas modalidades extermínio, perseguição e outros atos desumanos, com base no Estatuto de Roma.

No caso do presidente da República, e de outras pessoas com foro privilegiado, cabe ao procurador-geral da República (PGR), Augusto Aras, dar continuidade às investigações e arquivar o caso ou apresentar denúncia formal ao STF. Devido a essa importância, Aras foi um dos primeiros a receber uma cópia do relatório pelos senadores. Na ocasião, o PGR afirmou que a “CPI já produziu resultados. Temos denúncias, ações penais e civis em curso, autoridades afastadas. E a chegada desse material que envolve pessoas com prerrogativa de foro por função vai contribuir para que possamos dar a agilidade necessária à apreciação dos fatos que possam ser puníveis seja civil, penal ou administrativamente”.

Senadores entregam o relatório final ao procurador-geral Augusto Aras. Foto: Agência Senado

 

Porém, a atuação de Aras nas investigações contra Bolsonaro são vistas com receio por parlamentares da oposição, pois consideram que o procurador-geral protege o presidente. Em agosto, os senadores Fabiano Contarato (Rede-ES) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE) — este foi membro suplente da CPI — apresentaram queixa-crime ao STF, afirmando que o chefe do MPF foi omisso perante os ataques de Jair Bolsonaro contra o sistema eleitoral e eventuais omissões do governo federal no combate à pandemia.

Caso Aras decida, porém, arquivar os casos que envolvem o presidente, “ele deverá apresentar uma manifestação perante o STF justificando o motivo pelo qual entendeu não haver configuração de crime no material”, explica a jurista Helena da Costa. Ela complementa: “o STF não pode iniciar um processo penal por si próprio, mas o PGR também não pode arquivar a investigação sem ter motivos jurídicos claros para isso”.

Os crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro, segundo a CPI, são cabíveis para abertura de processo de impeachment. Porém, Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados e a única pessoa que pode determinar esse processo, é aliado do presidente e adversário político de Renan Calheiros, relator da CPI. Lira criticou o relatório final e disse que a inclusão de deputados federais entre as recomendações de indiciamento era “inaceitável”.

Assim, as principais consequências políticas e criminais que podem afetar o presidente Jair Bolsonaro se encontram nas mãos de dois homens considerados seus aliados.

Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, recebe o relatório final das mãos de Randolfe Rodrigues, vice-presidente da CPI. Foto: Agência Senado

 

Genocídio

Em uma redação prévia do relatório, o relator Renan Calheiros havia incluído também o crime de genocídio contra povos indígenas por Bolsonaro, mas acabou retirando a acusação após críticas de outros senadores, que afirmaram não haver provas suficientes para o indiciamento. 

No texto final, há um capítulo inteiro dedicado à análise da situação dos povos indígenas durante a pandemia. Neste capítulo, está incluso um tópico no qual se debate a definição de genocídio em que se lê o seguinte: “A definição de genocídio certamente é defensável, mas o caráter sistemático com que o anti-indigenismo se manifesta nas políticas e atitudes que expuseram os indígenas ao vírus e à violência amolda-se melhor à definição de crime contra a humanidade, nas modalidades extermínio e, inegavelmente, perseguição”.

Conforme explica Helena da Costa, que apresentou parecer à CPI, “o crime de genocídio exige, para sua configuração, um elemento especial, que é a intenção de eliminar uma determinada população através da conduta criminosa”. Ela afirma que “no caso específico da gestão da pandemia e com base nas provas colhidas pela CPI da Covid, esse elemento não estava claramente configurado. Por isso, apontamos a configuração de crime contra a humanidade, que abrange ataques generalizados ou sistemáticos contra a população civil, por parte de quem exerce o poder”.

Os crimes contra a humanidade estão configurados no Estatuto de Roma, que institui o Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia, do qual o Brasil é signatário e, portanto, está submetido à autoridade da corte. “A denúncia lá apresentada será analisada pelo Promotor do tribunal, que poderá aceitá-la ou não. Caso seja aceita, o promotor aprofundará as investigações e poderá propor processo contra os responsáveis, o que poderá culminar com a aplicação de pena de prisão”, comenta a jurista.

Ministério da Saúde e o “gabinete paralelo”

Segundo o relator Renan Calheiros, a CPI comprovou o descaso do governo federal no combate à pandemia. Além de incentivar aglomerações e disseminar notícias falsas, bem como o “deliberado atraso” na compra de vacinas. O senador sustenta também que o presidente da República, auxiliado pelo chamado “Gabinete Paralelo” — grupo de pessoas que aconselhava Bolsonaro a tomar medidas anti científicas, composto por médicos, políticos e empresários —, promoveu a “imunização de rebanho” por meio da exposição da população ao vírus e ao tratamento precoce, conjunto de medidas comprovadamente ineficientes no combate à covid-19. 

Indo na contramão dos critérios e protocolos sustentados pelos servidores e técnicos do Ministério da Saúde, o governo federal agiu de forma omissa e “não técnica e desidiosa no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, expondo deliberadamente a população a risco concreto de infecção em massa”, afirma o relatório.

Ao longo da pandemia, o governo federal teve 4 ministros da saúde. Luiz Henrique Mandetta era o chefe da pasta quando o coronavírus chegou ao Brasil, mas deixou o cargo após desentendimento com Bolsonaro. Segundo o ex-ministro, o presidente era orientado por membros de fora do ministério, como o deputado federal Osmar Terra e a médica Nise Yamaguchi, que compunham o que ficou conhecido como “gabinete paralelo”.

Os 4 ministros da saúde que enfrentaram a pandemia do novo coronavírus. Na coluna da esquerda, Marcelo Queiroga e Eduardo Pazuello. À direita, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Fotos: Agência Senado

 

No depoimento que concedeu aos senadores da comissão, Mandetta reconheceu que ocorriam reuniões entre Bolsonaro e médicos de fora do ministério, para as quais o ministro não era convidado. Em uma dessas reuniões, foi proposta a alteração da bula do remédio cloroquina, para incluir sua indicação para o tratamento precoce da covid-19.

Dos 4 ministros que estiveram à frente da pasta, foi recomendado o indiciamento de 2 deles. O atual ministro Marcelo Queiroga é apontado como tendo cometido prevaricação e epidemia com resultado morte. Eduardo Pazuello, general que comandou o ministério até março de 2021, foi acusado dos mesmos crimes que Queiroga, além da acusação de comunicação falsa de crime, emprego irregular de verbas públicas e crime contra a humanidade.

Fake news

O relatório dedica um capítulo inteiro para apontar a desinformação sobre a pandemia, veiculada principalmente pelo presidente e pessoas próximas a ele. Em suas lives semanais e nas redes sociais, Bolsonaro defendeu o tratamento precoce, incentivou aglomerações e fez oposição ao isolamento social, o que contribuiu para o aumento do negacionismo científico. Por essa razão, a CPI pediu o indiciamento do presidente, e de seus filhos Flávio, Eduardo e Carlos, por incitação ao crime de descumprimento de medidas sanitárias. 

“As consequências dessas ações foram trágicas. A propagação das notícias falsas gerou um clima de desconfiança na população, incentivou as pessoas a agirem com leviana normalidade, fato que gerou uma exposição perigosa e desnecessária ao novo coronavírus e, consequentemente, contribuiu para a perda de vidas adicionais durante a pandemia”, aponta o parecer.

Empresários como Luciano Hang e Otávio Fakhoury são apontados como financiadores de um esquema de disseminação de fake news sobre a pandemia. O blogueiro bolsonarista Allan dos Santos é mencionado como o principal agente dessa prática.

Vacinas

Considerada a melhor forma para se conter a pandemia e evitar mortes, as vacinas foram centro das investigações da CPI. As críticas de Bolsonaro às vacinas, tendo inclusive declarado que não se vacinaria, e a postura omissa de seu governo perante a compra dos imunizantes constituíram um agravante à situação pandêmica no Brasil.

“A atuação negligente do governo federal na aquisição de vacinas apenas reforça as hipóteses levantadas nos capítulos anteriores deste Relatório: optou-se por priorizar a cura via medicamentos, e não vacinação, e expor a população ao vírus, para que fosse atingida mais rapidamente a imunidade de rebanho pela contaminação natural”, aponta o parecer.

Dentre os casos mais emblemáticos da CPI da Pandemia, a exposição dos 81 e-mails enviados pela empresa farmacêutica Pfizer oferecendo vacinas ao governo federal se destaca. Dessas correspondências, 90% não obtiveram resposta, o que revela o descaso e omissão frente à compra de imunizantes.

Além disso, o caso da Covaxin também mereceu destaque no relatório. As vacinas Covaxin, do laboratório indiano Bharat Biotech, também foram um tópico de relevância no relatório. Conforme apontado pela comissão, essas vacinas receberam dedicação especial do governo, diferentemente das ofertadas pela Pfizer. Apesar do imunizante indiano não possuir autorização da Anvisa, a negociação foi feita com preço acima das demais contratadas e pagamento adiantado em offshore por meio de intermediários.

Foi relatada também pressão dentro do Ministério da Saúde para a compra de doses da Covaxin. Segundo o relatório, “para além da criminosa negligência quanto à proteção da vida e da saúde dos brasileiros, havia também interesses escusos permeando as ações de autoridades federais durante a pandemia”.