Macacos, obra de Clayton Nascimento escrita no Conjunto Residencial da USP, faz sucesso, bate recorde e é transformada em livro indicado como leitura didática

por Rosiane Lopes

O espetáculo Macacos, da Cia do Sal, está agora também publicado pela editora Cobogó na Coleção Dramaturgia. Imagem: Instagram/clay.nascimento
Livro esgotado na 24ª Festa do Livro da USP. Bilheteria esgotada em todos os teatros. Filas enormes de pessoas à espera da chance de assistir ao espetáculo, cujos únicos elementos cênicos são um batom e uma bermuda. Depois de seis anos de sua criação, Macacos — monólogo escrito, dirigido e interpretado pelo ator, professor de teatro e dramaturgo Clayton Nascimento — ganha reconhecimento nacional.
Clayton é formado em Educomunicação na USP e, atualmente, é mestrando em História do Teatro na Escola de Comunicações e Artes (ECA). Ex morador do Conjunto Residencial da USP (Crusp), iniciou a escrita de sua obra na moradia estudantil. “Macacos é um monólogo de um homem preto, uma bermudinha, um batom e um novo olhar da história do Brasil”, define o artista.
O monólogo trata de um fluxo de pensamentos de uma pessoa preta que busca entender a origem do racismo a partir do xingamento macaco, um dos mais usados no Brasil para ofender negros. A obra se divide em nove episódios e 1 ato. O autor se baseia em situações racistas vivenciadas por artistas negros como Bessie Smith, Elza Soares e Machado de Assis.
O contato frequente de Clayton com as bibliotecas da Universidade, o seu interesse e a presença em disciplinas optativas, fez com ele se deparasse com informações sobre a historicidade brasileira que não estão presentes nos livros didáticos. “Eu pude recontar a história do Brasil através desses fatos, de 1500 até os dias de hoje. Vejo Macacos como um novo olhar e um novo modo de contar nossa história, a partir de pesquisa e de muito estudo”, conta.
O processo de produção
Clayton cita alguns dos casos norteadores na produção de Macacos. O caso do jogador Aranha, por exemplo, foi inspiração para o nome de seu espetáculo. No episódio, o ex-goleiro foi alvo de ofensas racistas em campo.
“Lembro que eu estava no Crusp, liguei a TV e vi pessoas gritando MA-CA-CO, MA-CA-CO. Eu fiquei chocado com aquilo. Como é que pode pessoas no espaço televisionado terem a força interna de se dirigirem a alguém deste modo? Daí, eu concluí: significa que existem forças históricas que permitem essa pessoa ser assim, então preciso estudá-las.”
Ainda na graduação, Clayton escreveu uma cena de três a cinco minutos sobre a história de Bessie Smith.
“Eu escrevi sobre a Bessie Smith, uma cantora negra que sofreu um acidente de carro, teve o braço decepado, o atendimento a ela foi negado, porque era um hospital público e branco, e a Bessie Smith morreu. Eu lembro de pensar: meu Deus, isso é muito grave, como ninguém fala a história dela? Vou fazer uma cena em que eu vou contar a história dela.”
Com a cena pronta, Clayton foi para festivais de peças curtas em estados como Amazonas, Brasília, Ceará e Rio de Janeiro. Em cada local, ele se deparou com histórias relacionadas à escravidão e ao racismo, depois de estudá-las, as encaixou de alguma maneira em Macacos. “A peça foi crescendo da Bessie Smith aos casos do Brasil à fora”, pontua.
No último momento do espetáculo, Clayton redireciona a performance para si mesmo. Em 2018, em um ponto de ônibus na avenida Paulista, o artista foi acusado falsamente por um casal de ter roubado um suposto mercado que pertencia a eles. O local estava cheio de pessoas. O universitário, na época, com medo do agressor, pediu ajuda aos presentes para que o homem não se aproximasse.
“E ninguém me ajudou. Na hora eu falei: nossa, as pessoas realmente acham que eu sou ladrão. Fui espancado por esse casal e, no final, eles me roubaram. Se tratava de um assalto racista. Quando eles disseram que eu era um ladrão, garantiram que ninguém me defenderia, então eles poderiam me roubar na frente de todos sem acontecer nada. E é aí que eu sinto realmente que existem forças históricas e sociais contra os corpos negros, por isso, eu precisava retomar a escrita do meu espetáculo. Quando eu chego no último momento dele, coloco um episódio falando sobre mim e a peça finaliza.”
Pi-au-í-lis-ta-no
Nascido no Piauí, mas criado em São Paulo, Clayton se autoproclama Piauílistano. O artista conta que cresceu na periferia de Jabaquara ao longo dos anos 90. Com uma infância muito feliz, ele lembra das brincadeiras de rua. Carrinho de corrimão, escalar árvores e policia e ladrão.
Seus pais, caracterizados pelo ator como carinhosos e acolhedores, desde cedo perceberam que o pequeno Clayton era um jovem artístico e o levaram à Casa do Teatro da Lígia Cortez. “Eu tive excelentes amigos ao longo da vida que também fortificaram muito meu eu para me tornar o artista e escritor que sou hoje. Tive 98% de excelentes professores na minha história, eu conheci muita gente boa que me ajudou”.
Clayton ingressou na USP em 2011, um ano antes da Lei de Cotas. O começo da Universidade foi difícil. No ano seguinte, ele pôde ver rostos semelhantes ao seu, o que o deu forças para continuar na Universidade e se dedicar aos estudos, até chegar na produção de seu monólogo.
Das brincadeiras nas ruas de Jabaquara aos palcos de todo o Brasil, além de, a partir do ano que vem, ter sua obra em livros didáticos, Clayton acaba de se tornar preparador de elenco da série Rota 66, da Rede Globo.
Ele agradece à USP pela qualidade das bibliotecas, pela qualidade acadêmica dos professores e pelo acolhimento no tempo que residiu por lá. “Eu gostaria de agradecer a Ferdinando Martins, Ricardo Alexino, Fausto Viana, Ismar Soares. Todos professores que foram bons para mim, que me ensinaram a me alimentar, para ter fibra interna e escrever uma obra como essa, parar em livros didáticos e bater recordes como o primeiro monólogo preto que esgota bilheterias.”
Clayton finaliza com um recado: “Se tiver algum aluno da USP ou cruspiano lendo essa entrevista agora, acredite, o ensino vai mudar sim a história da sua família e a sua”. “Eu costumo dizer que a história de uma nação pertence ao seu próprio povo, ou seja, ela é nossa”, conclui.