Enfim, o obituário do Chico

Por Julia Magalhães e Laura Pereira Lima:

Placa dedicada ao Chico no IB [Imagem/Reprodução: Julia Magalhães]

A euforia da volta às aulas presenciais foi ofuscada por uma notícia trágica que emudeceu o Instituto de Biociências (IB) da USP: Chico morreu. 

Aos 18 anos de idade, Chico já vivera tudo que o Instituto tinha a oferecer. Ou melhor, quase tudo. Não costumava frequentar muito as aulas — não tinha disciplina para ficar sentado e quieto por longas horas —, mas, quando entrava na sala, tornava-se instantaneamente a sensação. Talvez por causa de seu andar torto e desajeitado, ou talvez porque insistia em usar a mesma roupa vermelha durante todo o inverno.

Comia no bandejão sempre que podia, mas seus colegas estranhavam ao ver seu prato cheio de carne — sempre preferia proteína. Os hábitos alimentares de Chico deixariam qualquer vegetariano assombrado, e seus costumes noturnos escandalizavam os mais puritanos. Até as bromélias sabiam que Chico gostava de se aventurar pelas noitadas do campus, diziam até que ele tinha filhos espalhados por todos os institutos. Nunca chegou a assumir a paternidade de nenhum deles, o que certamente lhe traria imbróglios na justiça — se ele não fosse um cachorro.

Chico era o famoso vira-lata com a genética caramelo. Ele foi o veterano de muitos biólogos e protegia lealmente o IB e os funcionários do instituto, seus principais companheiros. “Chico era meu irmão”, diz Fabrício, guarda do laboratório Sobre as Ondas desde 2015. Até mesmo quem não era do Instituto de Biociências cuidava da saúde e da alimentação do Chico, como os alunos da veterinária e a equipe do bandejão, que guardavam as sobras do dia especialmente para ele. 

Chico chegou ao Campus junto com a reforma do prédio da administração do IB, em meados de 2004. Tinha algo em torno de dois anos. Ninguém sabe se era o cão de algum dos pedreiros ou se insistia em segui-los pela Cidade Universitária. Quem o visse pelo campus não suspeitaria que era um cão abandonado; ele estava sempre usando uma coleira marrom com os números de telefone dos laboratórios Sobre as Ondas e da Botânica, suas casas principais. 

Chico teve vários donos: “Falam que cachorro com mais de um dono morre de fome, não foi o caso dele, Chico foi muito bem cuidado aqui”, conta Shao, biólogo que conheceu o cão m 2014. Além dos funcionários e alunos, ele foi muito amado por uma visitante recorrente do IB. Entusiasta de piqueniques há 18 anos. Ela cuidou tanto de Chico a ponto de se endividar. Nos últimos momentos do cão, ela foi uma das primeiras a ser avisada sobre o estado crítico. Levado ao veterinário, o popular vira-lata não resistiu; morreu de velhice – ou talvez de saudade do agito das aulas presenciais. 

Embora tenha sido um cachorro amável e viciado em carinho, Chico já foi vítima de pauladas e atropelamento. “A pancada que ele levou nas costas afetou o labirinto, ele estava andando torto. Até achamos que o quadro não ia normalizar, mas acabou, graças a Deus, revertendo”, Fabrício afirma.

Chico foi só mais um dos diversos cachorros deixados no Campus. “Se não fosse por esse abandono, a gente não teria conhecido Chico. Mas acho que a gente não pode se debruçar sobre essa hipótese e deixar as pessoas passarem pano no que elas fazem”, afirma Shao. O abandono de animais afeta também a fauna do campus. Cachorros são naturalmente predadores e atacam animais menores. A chamada “matilha negra”, um grupo de seis a sete cães pretos que vivem na Rua do Matão, é o principal exemplo desse desequilíbrio ambiental. Eles foram abandonados, se reproduziram rapidamente e se alimentam de pequenos mamíferos. “Eu acho que a Universidade poderia ter um viveiro. Seria uma forma de conseguir acolher os animais que ainda são jogados aqui e castrar adequadamente”, comenta Shao sobre uma possível solução. 

Chico era protetor, feliz e amado. Há três anos, ganhou uma placa na frente do seu jardim favorito: “Chico, mascote do IB, partiu no dia 01/06/2020, deixando saudades. Amigo, companheiro, ficará para sempre na memória de quem o conheceu. Descanse em paz, velhinho”. Agora, Chico também tem um obituário.