Primeira indígena mestre pela FMUSP pesquisa estigma do HIV entre os Guarani-Kaiowá

Indianara Machado investiga a percepção do povo indígena sobre o vírus e sua relação com a alta taxa de mortalidade na etnia

Por Caroline Santana, Lívia Lemos e Yasmin Araújo:

Indianara Ramires [Foto: Arquivo Pessoal]

A formatura da primeira indígena mestre pela Faculdade de Medicina da USP mereceu reportagens e repercussão dentro e fora do campus. Seu trabalho acadêmico, porém, foi pouco noticiado. A pesquisa de Indianara Ramires Machado toca em uma ferida aberta, mas pouco visível: a Análise interdisciplinar e intercultural sobre as pessoas vivendo com Vírus da Imunodeficiência Humana e a Síndrome da Imunodeficiência na população Guarani da Terra Indígena de Dourados em Mato Grosso do Sul se volta para os impactos do vírus da imunodeficiência humana (HIV) na comunidade indígena Guarani-Kaiowá.

De acordo com dados do Distrito Sanitário Especial Indígena de Mato Grosso do Sul (DSEI-MS), nos anos de 2018, 2019 e 2020, foram registrados 19 óbitos de indígenas que viviam com o vírus no estado. Desses, 16 pertenciam à comunidade Guarani-Kaiowá. O objetivo da análise da mestra é entender de que forma a alta ocorrência e letalidade do HIV nas aldeias indígenas assumem significados diferentes na visão biomédica e na visão indígena. Diante disso, a pesquisa busca colaborar para um aperfeiçoamento de políticas públicas e programas de saúde em situação de interculturalidade, como uma maneira de melhorar os índices, por exemplo, da alta taxa de mortalidade.

Para a realização de seu estudo, a mestra reuniu 12 indígenas portadores do vírus na comunidade Guarani-Kaiowá. A seguir, realizou análises qualitativas por meio de um questionário padronizado que incluíam informações sociodemográficas e de comportamento sexual. O resultado revelou que há uma grande estigmatização da doença por parte da comunidade, o que impacta diretamente no tratamento: “Uma das questões que discutimos na dissertação é sobre o tratamento e o fato [do paciente] de não querer tomar o remédio. Há uma negação da doença que existe dentro da cosmovisão da comunidade”.

A cosmovisão Guarani

Embora o povo Guarani-Kaiowá reconheça o HIV como um vírus sexualmente transmissível e possivelmente letal, na cosmovisão da comunidade, a doença carrega o símbolo de um mal ou um feitiço que cai sobre o portador. Esse estigma em torno da doença contribui para a morte social da pessoa portadora do vírus, uma vez que o indivíduo passa a ser excluído da coletividade: “Vimos um caso em que a família morava numa casa e a pessoa portadora morava em um barraco ao lado, porque ela era vista como uma ameaça para a família”, explica Indianara. Além do isolamento, os portadores são proibidos de participarem de momentos em comunidade, como tomar tereré, uma prática comum do povo indígena.

O medo da exclusão social, somado à vergonha de receber o diagnóstico, contribui para que o indivíduo não procure ajuda médica. A consequência, de acordo com a pesquisadora, é a dificuldade de identificar os portadores do vírus, o que acarreta na alta taxa de mortalidade, uma vez que, sem diagnóstico, não há tratamento: “Muitas pessoas que possuem HIV vivem por 60 ou 70 anos. Na comunidade, elas não chegam nem a 10 anos por falta ou abandono do tratamento”.

A primeira em 110 anos

A conquista de Indianara abre portas para a discussão a respeito de acesso, diversidade e representatividade dentro da universidade. Em 110 anos de existência, somente agora a primeira indígena se formou mestre pela faculdade. A pesquisadora afirma que se mantém positiva em relação a presença de mais parentes – referência aos demais indígenas da sua comunidade – na universidade. Para isso, ela destaca a necessidade de investir em políticas afirmativas e de permanência: “Precisamos pensar em iniciativas dentro da universidade, trabalhar temas não só com professores, mas com alunos e funcionários para minimizar também a discriminação”.