Por Suelyton Viana, em uma experiência de autoficção

Mais um jantar na casa de Joana, o silêncio ocupava um lugar espaçoso à mesa, quebrado agudamente pelas garfadas que ela, os pais e o irmão davam nos pratos. Até o pai tentar quebrar o gelo, com a voz cansada por mais uma terça-feira.
– E como anda a faculdade?
– Está bem legal! Depois dessas férias começo a pesquisa pro meu projeto de iniciação científica, quero pesquisar sobre a literatura galego-portuguesa e…
– Iniciação centrífica, que amostrada! – cortou seu irmão, Luiz, rindo.
Os pais apenas se entreolharam, pois esse era o sentimento geral na casa. A filha agora falava palavras difíceis para eles que não terminaram nem o ensino fundamental, acrescentando mais uma dificuldade de interpretação no relacionamento com a moça que já estava distante por ter ido estudar na capital. O patriarca logo tenta retomar:
– Tenho muito orgulho de você, mesmo não entendendo tudo o que você faz.
– Filha, a Maria perguntou qual faculdade você faz. Eu falei que era pedagogia, né?
– É Letras, mãe.
– E não é a mesma coisa pra ser professora?
– Na Letras eu tô estudando pra dar aula pra crianças mais velhas e adolescentes.
– Ah, sim. Na minha época era só fazer magistério – a mãe responde com certo desinteresse, até se ocupar de assuntos que fossem mais urgentes para a família, como o preço do azeite.
Joana esperava esse fim comum de todas as conversas sobre sua faculdade, sabia da felicidade dos pais em ter uma filha estudante da maior universidade da América Latina e também sabia que talvez trouxesse ainda mais felicidade se já trabalhasse e ajudasse com as contas de casa, em vez de “só” estudar. Na família Pereira, ainda na adolescência, a carreira de empregada doméstica ou operário já fazia parte da realidade de cada membro.
Tentou retornar ao que estava em pauta na cozinha, mas era cansativo desmentir as fake news sobre o assunto do momento que os parentes recebiam pelas redes sociais. Não queria abusar do estigma de “sabe-tudo” da casa e guardava sua opinião para momentos mais críticos.
Dali se seguiu mais um silêncio até que todos dessem as boas noites e se retirassem para seus quartos. A volta para o quarto era sazonal: só retornava a Hortolândia nos feriados prolongados e férias.
O cômodo cor-de-rosa guardava as marcas de uma estudante que estava destinada a ser a primeira da família a ingressar no ensino superior: post-its com fórmulas e mais fórmulas matemáticas estavam perto da mesa onde passou horas estudando.
E foi vislumbrando esse passado que ela chegou no último semestre, em um misto de orgulho e nostalgia: lembrou da felicidade ao abrir a lista de aprovados da universidade, da dificuldade de achar moradias baratas na cinzenta cidade de São Paulo e das palestras de coletivos estudantis que falavam de pertencimento universitário.
As bolsas que recebia da universidade eram essenciais para continuar morando perto da instituição, mas na maioria dos momentos se sentia distante dos colegas que tinham poder aquisitivo e bagagem cultural maiores. Nos momentos de desespero, pensava que as cotas foram um erro, já que essa tentativa de reparação a colocava no mesmo lugar que pessoas que tiveram menos dificuldade para ingressar, entretanto o ambiente não foi pensado para acolher pessoas como ela.
Até estudar o que ama a fez questionar se aquele era o lugar a que pertencia, afinal os professores nem sempre falavam de forma clara para quem teve um ensino básico defasado. Se em vários momentos da adolescência tinha sido o destaque das turmas em que estudou, a maioria ali parecia alunos mais preparados de escolas de ensino médio melhores.
Mas talvez o que mais doesse fosse entender que sua criação com poucos livros na estante e muitos minutos em frente à televisão, uma das únicas formas de lazer que cresceu tendo acesso, a fazia ficar de lado em várias conversas que iam desde literatura russa e movimento tropicália a filmes de Almodóvar. Mesmo com essas inseguranças, em casa era como se agora ela representasse essa imagem para a família: uma figura imponente, segura, de futuro brilhante, dicionário na ponta da língua e acesso ao tipo de cultura que é bem-visto.
Esse sentimento de inadequação se repetia todas as vezes que conhecia um lugar novo, como um bar de decoração bonita no qual a água mineral custa 7 reais. Pensava em como queria apresentar o espaço para a família e até imaginava o que cada um pediria do cardápio. Eles nunca teriam o que ela tem, nunca iriam a todos os lugares que ela vai. Estava vivendo sonhos que os pais, avós, bisavós e gerações anteriores sequer tinham a oportunidade de imaginar, mas nunca saberia se estava vivendo certo porque nunca teve referência de como estar ali, distante da origem e do destino, uma estrangeira onde quer que fosse.