Episódios que ganharam repercussão no último mês chamam a atenção para a subnotificação de ocorrências nos campi e expõem negligência da Universidade

Por Gabriela Varão e Julia Alencar*
Nas últimas semanas, três casos de estupro na Cidade Universitária ganharam repercussão na mídia. Ainda assim, as vítimas relatam dificuldades em conseguir o apoio necessário para se sentirem seguras no campus. Uma moradora do Conjunto Residencial da USP (Crusp) foi estuprada por seu vizinho em maio e, mesmo com uma ordem de restrição, continua o encontrando nos corredores e bandejões. Na noite de 21 de agosto, uma aluna sofreu uma tentativa de roubo e estupro na Praça do Relógio, e até o momento o autor não foi identificado. Na semana seguinte, outra moradora do Crusp foi abusada por um vizinho e, apesar de sua expulsão da moradia, o agressor segue frequentando o mesmo instituto que a estudante. De acordo com as alunas entrevistadas pela reportagem, esses três casos são um número pequeno quando comparado à quantidade de ocorrências não denunciadas de violência de gênero na Universidade.
O caso do dia 21 foi o primeiro a vir a público, e fomentou debates acerca dos problemas de iluminação nos campi da capital e levou coletivos a agir com urgência para pressionar as autoridades da Universidade. Em nota oficial, a Superintendência de Prevenção e Proteção Universitária (SPPU) afirma que “foi prestado todo o apoio necessário à vítima [do dia 21 de agosto] no momento do incidente, e após o sucedido, a Guarda Universitária e a Polícia Comunitária intensificaram rondas na região, sobretudo após às 18h”.
A reportagem do JC ouviu relatos de estudantes e funcionárias que dizem não se sentirem seguros na Universidade, principalmente à noite, e que os principais agravantes são a má iluminação e lugares pouco movimentados com falta de vigilância. A Praça do Relógio, no entanto, não é o único local que apresenta esses problemas, apesar de ser o foco das medidas emergenciais tomadas neste mês.
Estudantes do período noturno ouvidas pelo JC disseram que alguns espaços da Cidade Universitária ficam muito escuros e vazios à noite e, por isso, temem circular por esses locais. Os lugares mais mencionados pelas entrevistadas foram a Rua do Matão, a Praça do Relógio, os arredores do Instituto de Ciências Biomédicas e a Portaria 3. Para aqueles que precisam frequentar a universidade nesse horário, a segurança se torna uma preocupação. De acordo com um relatório da SPPU, no ano passado foram registradas 190 ocorrências de roubos, furtos e sequestros. Neste ano, de janeiro a junho, já houve 116 denúncias.
Bruna (nome fictício) relatou ter sido perseguida na Rua do Lago, quando saía da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). “Por causa das folhas secas das árvores que cobrem a rua, eu escutei passos e olhei para trás. Tinha um homem alto, todo de preto e cabisbaixo, usando uma máscara, capuz e com as mãos no bolso da blusa de frio. Tive a impressão de que ele não era aluno, porque estava vestido estranho e sem bolsa”. Bruna conta que começou a andar mais rápido enquanto enviava sua localização para o namorado, e os passos do homem também aceleraram. “Nessa hora, outro aluno apareceu na direção oposta e trombei com ele. Isso me deu segurança para correr até o prédio da FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo]. Não sei para onde o homem foi, mas não vi mais ele.”
Já Mariana (nome fictício) relata que foi abusada, mas – assim como em outros casos na USP – não denunciou: “Eu fui estuprada por um colega de curso, um veterano, e quando eu vi a reportagem da Globo dizendo que o último caso registrado foi em 2015, eu quis vomitar”. A estudante assegura que conhece casos muito mais recentes, que, segundo ela, “provavelmente não foram denunciados pelo mesmo motivo que eu não denunciei – porque eu sabia que não ia dar em nada e que eu só passaria por um processo vexatório e ficaria marcada na Universidade, sem conseguir estudar em paz.”
As estudantes recorrem ao DCE, coletivos feministas e Centros Acadêmicos por não verem uma saída pelos próprios órgãos da universidade.
Naomi Asato
Naomi Asato, estudante de Ciências Sociais e integrante do Diretório Central de Estudantes da USP (DCE), afirma que, com a repercussão dos casos recentes, cada vez mais pessoas têm procurado a entidade para fazer denúncias, “tanto de outros casos no Crusp, quanto de casos envolvendo professores que assediam alunas”. A estudante também reforça a questão da moradia estudantil, uma vez que “muitas vezes, mesmo com casos de estupro, o que ocorre é que os agressores não são expulsos dos blocos”, diz Naomi. Para ela, isso mostra que “a instituição negligencia as próprias estudantes que foram vítimas”.
Naomi ainda comenta que, apesar da importância das denúncias, “a responsabilidade [de lidar com esses casos] não deve recair sobre as estudantes, mas à Universidade”, reiterando o papel da instituição de criar um ambiente seguro e efetivo para que sejam ouvidas. “As estudantes recorrem ao DCE, coletivos feministas e Centros Acadêmicos por não verem uma saída pelos próprios órgãos da universidade. No coletivo feminista da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), havia um formulário de denúncias, mas vinham casos tão pesados que adoeciam as próprias militantes e ele precisou ser fechado”, afirma.
Ações e medidas
O Coletivo Feminista Anna Néri (Cofan) da Escola de Enfermagem (EE) da USP criou a iniciativa Vamos juntas?, com o objetivo de evitar que alunas andem sozinhas pela faculdade e pela cidade. A ideia é unir estudantes que façam caminhos semelhantes para que não voltem desacompanhadas para casa. O grupo foi formado em 2021, com a proposta de ser um espaço seguro e de aprendizado sobre feminismo. As integrantes organizam palestras, rodas de conversa e ações diversas, como disponibilização de absorventes em banheiros femininos da faculdade.
O projeto começou na EE e foi se expandindo. Atualmente, o Vamos Juntas? pretende unir alunas de vários campi da USP na capital. Ana Beatriz Silva, estudante de enfermagem e integrante do coletivo, conta que a entidade está se organizando para reestruturar a iniciativa, já que tiveram dificuldades para juntar as pessoas. “A gente não achou que fosse ganhar tanta amplitude, mas agora que ganhamos, estamos procurando outros métodos para melhorar. No começo, a gente não conseguia juntar as pessoas com caminhos semelhantes porque as pessoas não faziam os mesmos trajetos.” Além da iniciativa, a estudante também lembra as oficinas de defesa pessoal voltadas às alunas da EE. Organizadas anualmente pelo Cofan, foram descontinuadas em junho de 2023 pela baixa procura.

Em nota enviada ao JC, a SPPU afirma que, atualmente, a Central de Controle e Operações (CCO) da Guarda Universitária monitora um total de 1450 câmeras no Campus Butantã e as imagens são acompanhadas em tempo real. Após o caso na Praça do Relógio, a Prefeitura do Campus se comprometeu a fazer podas das árvores, priorizando lugares menos iluminados.
No Plano Diretor, há uma proposta de caminhos a serem melhor iluminados. A prefeita do Campus Butantã, Raquel Rolnik, explica que o sistema “precisa melhorar muito”, visto que foi implantado há mais de 10 anos, tem 7 mil luminárias e já sofreu desgaste. “Tivemos que trocar quase 3 mil lâmpadas nos últimos três anos e meio. Por isso, estamos trabalhando em um projeto de adequação para um sistema mais moderno e inteligente, para que as lâmpadas queimem menos, e que avise onde está a lâmpada queimada para fazermos a troca mais rapidamente.” Rolnik enfatiza que esse projeto foi entregue no fim de setembro, e o que falta é a licitação para encontrar uma empresa que o implemente.
O aplicativo Campus USP é um dos caminhos para relatar furtos, roubos, casos de assédio e, segundo a prefeita do campus, até mesmo lâmpadas queimadas, pontos escuros e árvores que precisam ser podadas. “Com essa informação, conseguimos priorizar esses locais”, destaca. A plataforma, disponível gratuitamente para dispositivos móveis, pode ser usada em situações de insegurança e emergência. Ao agitar o celular, o usuário pode ativar o sistema de alerta e acionar a Guarda Universitária.
Resposta lenta
A burocracia presente nos processos é uma questão à parte. Heloísa Buarque de Almeida, livre-docente de Antropologia e uma das fundadoras da Rede Não Cala – coletivo de docentes da USP responsável pelo acolhimento de vítimas e denúncia de violência de gênero na Universidade – explica que o grupo pretende fazer uma reunião com a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) para discutir sobre uma nova proposta de encaminhamento dos casos. O objetivo é melhorar os processos administrativos que, segundo Heloísa, precisam ser agilizados.
A rede foi criada em 2015, quando a CPI dos Trotes investigava violações de direitos humanos nas universidades paulistas. Na USP, o relatório apontou que, entre 2005 e 2015, 112 casos de estupro teriam ocorrido no Quadrilátero da Saúde, que abriga a Faculdade de Medicina, a Escola de Enfermagem e a Faculdade de Saúde Pública.
A professora também aponta a “falta de clareza sobre onde denunciar em uma situação de emergência”. Ao ser acolhida, a vítima é encaminhada para a comissão da sua unidade de origem. Heloísa, no entanto, defende que “o ideal seria ter uma porta geral para todas, mas não temos ainda uma portaria para violência de gênero.”
O DCE continua mobilizações para exigir medidas efetivas no combate à violência de gênero na Universidade. Naomi critica o que ela vê como uma “burocracia gigantesca”. De acordo com a integrante do DCE, isso torna o processo mais lento e demorado e ainda causa a revitimização. “Não foram poucas as vezes em que os próprios órgãos não estavam preparados para apoiar a efetivação de medidas protetivas. A vítima é tratada como uma ‘peteca’, sendo jogada de um órgão para outro”, analisa Naomi.
*Com edição de Gabriel Carvalho e João Chahad