Apuração exclusiva do JC em 100 processos revela que terceirizadas foram condenadas em 71 casos e a Universidade em 49; ainda cabe recurso

Por Nicolas Vaz Coelho e Raquel Tiemi

“No dia 12/11/2020, por volta das 6h30, Marcello* (nome fictício) estava exercendo sua função de vigia quando, ao abrir um dos portões do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (USP), foi surpreendido com a queda do portão, devido estar corroído por ferrugem pela falta de manutenção, sobre sua perna esquerda, que o imobilizou, pois não tinha forças para levantar o portão.’’
Eis a transcrição literal dos autos de um processo trabalhista ajuizado contra a empresa Albatroz Segurança e Vigilância LTDA, contratada pela USP para prestar serviços no campus Butantã. Essa forma de contratação de empresas para a prestação de serviços é chamada de terceirização. Dessa maneira, o vínculo trabalhista do empregado se estabelece diretamente com a empresa terceirizada. Porém, quem recebe os serviços é a USP.
Julgado em primeira instância, a empresa foi condenada em R$ 40 mil e a USP responsabilizada subsidiariamente na ação trabalhista. De acordo com o processo e o especialista consultado pela reportagem do Jornal do Campus, Leonardo Aliaga Betti, juiz titular da 3ª Vara do Trabalho de Mogi das Cruzes e professor da Escola Paulista de Direito, a USP – como contratante da empresa prestadora de serviço – é responsável por fiscalizar e garantir aos empregados um ambiente de trabalho adequado.
O caso de Marcello é um dos 700 processos ajuizados por trabalhadores de empresas terceirizadas da USP ou da própria Universidade, entre 2022 e 2023, que foram encontrados via consulta de processos eletrônicos no site do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP). Para entender a natureza das queixas, o JC analisou 100 desses processos. A maioria diz respeito a salários atrasados, horas extras não pagas e falta de depósito do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) .
Nesse recorte, a USP é condenada em quase metade (49) das causas. Já as empresas contratadas foram condenadas em 71 ações – o total ultrapassa 100 condenações porque há processos em que tanto a terceirizada quanto a Universidade são condenadas. Em parte deles, ainda cabe recurso.

A reportagem também concluiu que as três empresas contratadas com maior número de processos foram a Sector Serviços e Conservação Ltda (36), a Albatroz Segurança e Vigilância Ltda (25) e a Higienix Higienização e Serviços Ltda (8).

Responsabilidades
Leonardo explica que a empresa contratada pela USP é a principal responsável pelas verbas decorrentes de um contrato de trabalho, já que é ela quem contrata a mão de obra. Entretanto, cabe legalmente à tomadora de serviços, neste caso a Universidade, a responsabilidade subsidiária de fiscalizar e acompanhar esses funcionários.
“Nós nunca podemos esquecer que o fato desses trabalhadores prestarem serviços nas dependências da USP implica que ela acaba sendo diretamente responsável por garantir um ambiente que preserve a saúde e a segurança”, afirma.
Como a USP constrói suas defesas?
O juiz explica que as teses de defesa formuladas pela USP devem se pautar no princípio da inexistência de culpa, ou seja, de que não há provas que ela deixou de fiscalizar a empresa contratada. Na esfera judicial, ele lembra que existe uma dificuldade em entender quem deve comprovar a fiscalização – ou a falta dela – nas ações.
Entretanto, segundo o professor, alguns juízes defendem que essa responsabilidade é do próprio trabalhador. Por outro lado, também reitera a dificuldade em juntar tais provas documentais. “O empregado tem muita dificuldade de demonstrar que a USP deixou de fiscalizar, provar algo que não aconteceu. No direito, chamamos de prova diabólica, quando se tem uma grande dificuldade em provar um fato”.
A fiscalização pode ser feita de diversas formas conforme a realidade de cada contrato realizado. Leonardo afirma que a USP pode determinar que a empresa prestadora apresente, com uma periodicidade adequada, os comprovantes de cumprimento de suas obrigações trabalhistas. “Essa fiscalização não é tão difícil como muitas vezes os entes públicos fazem parecer, difícil na verdade é saber que muitas entidades públicas acabam descumprindo esses deveres e ainda vem a juízo buscar se eximir dessa responsabilidade”.
A elevada quantidade de condenações das terceirizadas nos 100 processos trabalhistas analisados sinalizam como essa fragilização impacta diretamente a garantia dos direitos. As ações revelaram uma recorrente violação no pagamento de salários atrasados e verbas rescisórias, como o FGTS não depositado e horas extras não pagas, as mesmas apontadas pelo juiz Leonardo como mais comuns relacionadas a casos envolvendo terceirização.
Outro lado
Ao ser indagada pelo JC sobre o funcionamento da fiscalização das empresas contratadas, a USP afirmou que há uma Seção Técnica de Contratos Terceirizados dentro da Coordenadoria de Administração Geral, que promove a gestão e a fiscalização da execução de contratos de prestação de serviços terceirizados.
Além disso, a USP explica que “quando constatada uma irregularidade com a empresa contratada, o contrato é rescindido”. Quando questionada sobre o funcionamento da fiscalização e se as três empresas citadas tiveram seus contratos anulados, a Universidade não se pronunciou.
Até a publicação desta matéria, apenas a Albatroz Segurança e Vigilância Ltda das três empresas citadas se manifestou. Em nota, a empresa diz: “é natural, no segmento em que atuamos, por se tratar do fornecimento de mão-de-obra, a incidência de ações trabalhistas pelos mais variados motivos”.
Além disso, eles ressaltam que os contratos mantidos com a USP passam por um rígido controle. “A empresa mensalmente comprova a regularidade jurídica, fiscal e trabalhista de todos os funcionários alocados nas unidades, sendo isso fator essencial para a liberação dos respectivos pagamentos pelos serviços prestados”. Entre as três empresas com mais condenações, a reportagem apurou que pelo menos a Albatroz segue prestando serviços à Universidade.
Em caso de retorno das empresas Sector Serviços e Conservação Ltda e Higienix Higienização e Serviços Ltda, o espaço será atualizado.