
Escrito por Paloma Lazzaro*
O vento cortante na Praça do Relógio Solar faz com que participantes do grupo segurem firmemente as folhas da Bíblia, para que não se perca o versículo sendo referenciado durante a pregação. O tema deste encontro dos Águias de Jesus é a identidade – como cristãos se colocam no mundo. Há cerca de vinte pessoas entre as 18h e 19h30 na praça, a maioria são mulheres jovens. Alguns membros são visivelmente líderes do grupo. Gabriel abre a reunião com uma reza autoral (diferente da prática católica que estou acostumada, de rezas aprendidas na catequese com fichas ornamentadas) e Sarah fecha a reunião da mesma forma. A ordem dos eventos é a seguinte: cumprimentos, reza inicial, louvores, leitura de versículos, pregação, louvores e reza final. Fui recebida com apertos de mão e perguntas sobre qual veículo eu fazia parte. Uma das participantes se animou com o fato de ser um jornal impresso, mas houve também uma certa incerteza quanto ao viés do texto.
Os louvores são tocados por dois membros da Sociedade Bíblica Brasileira, Lucas e Marcos, convidados à reunião pela liderança. Acompanhado por violão e cajón, Marco lidera os vocais, todos os membros cantam, sem errar a letra nenhuma vez. “Se você acredita nisso, então declara! Declara forte e alto para o Senhor!” exclama Lucas durante o refrão de uma das músicas. Vejo algumas pessoas discretamente enxugando lágrimas enquanto cantam, me senti uma invasora da experiência espiritual alheia e baixei o olhar ao chão, tomado por formigas. Alguns membros atrasados do grupo chegam sorrateiramente já cantando, igualmente bem integrados às letras. Em termos estéticos, os louvores se assemelham a um pop-folk, diferentemente da música gospel dos Estados Unidos.
“É muito simbólico estarmos aqui, nessa localização central do campus. Mostramos que a USP é do Senhor, que as pessoas aqui são do Senhor. Afinal, estamos em um país que é livre, que não persegue, que nos permite amar ao Senhor”, é o preâmbulo de Lucas à sua pregação, que usa os versículos João 1:12, João 10:10, Eclesiastes 8:21, 1 Coríntios 2:14, 2 Coríntios 5:7 e Provérbios 4:23 como condutores para o tema. Ele afirma que somos seres espirituais, porém desafiados pelo Inimigo, que veio para roubar, matar e destruir, conforme João 10:10. “E quem é o Inimigo? Satanás é o Inimigo” Lucas explicita e eu me surpreendo, pois a palavra foi proibida pela minha avó ítalo-brasileira, sob a crença de que usar o nome do diabo trazia má sorte à casa. “Onde o Inimigo encontrou espaço nas nossas vidas? Nas brechas, é por elas que ele vem para destruir a nossa identidade”. Ele conta também uma história da época em que morava em Dublin com sua esposa e filhos: uma mulher ia cometer suicídio pulando de uma ponte e o casal a auxiliou a desistir. “O Senhor salvou uma vida”. O tópico traz aos rostos dos membros uma feição meio sombria, provavelmente desconfortáveis com o tema tabu, porém, é uma narrativa engajante.
“Como cristãos, temos acesso direto a Cristo, mas buscamos uma autoridade para essa mediação”, frase no discurso de Lucas, é uma boa explicação do apelo e interesse porgrupos como o Águias de Jesus na universidade. Há também uma missão, “Deus nos chamou para um tempo e uma realidade onde podemos fazer o que Ele nos ensinou. A nossa responsabilidade é trazer a realidade do céu para a terra”, parte do preceito geral de não se apegar ao material, ao carnal, ao terreno. A partir das 18:45, as palavras religiosas são entrecortadas por gritos e comandos do grupo praticando circuito HIIT na mesma praça, me distraindo um pouco. As picadas de formiga no meu tornozelo também começam a inchar, então acho uma forma discreta de coçá-las. De forma geral, a experiência é diferente de como é em igrejas. Apesar da estrutura semelhante de eventos, o ambiente é mais sincrético.
Na segunda-feira seguinte, falo com Letícia, líder da Aliança Bíblica Universitária (ABU USP) núcleo FFLCH. Ela explica que o grupo é voltado ao método indutivo de estudo bíblico. Vez ou outra, há eventos em igrejas ou campanhas focadas em algum assunto extra bíblico. Pergunto a ela se já sofreu perseguição na universidade. “Nunca senti nenhuma perseguição institucional. No nível interpessoal, foram apenas alguns comentários, vindos principalmente de pessoas que foram machucadas pela religião… acho que algumas pessoas falam de perseguição para se sentirem mais próximas das narrativas bíblicas” é sua resposta. A ABU é parte do IFES, uma instituição internacional de estudantes evangélicos, diferentemente do Águias de Jesus, que é um grupo não-vinculado. Ambos não são filiados a igrejas, porém, ainda são grupos voltados a cristãos evangélicos.
No dia seguinte à conversa com Letícia, houve uma reunião da ABU na FFLCH. O grupo era visivelmente menor que a reunião do Águias, além do caráter totalmente diferente dos eventos. Bruna, Vitor, Felipe, Thalita, Letícia e Pedro se apresentaram, dois deles fazem Letras Hebraico devido ao interesse em teologia, outros dois fazem filosofia por um motivo parecido. A reunião de terça-feira faz parte de uma série de discussões do grupo sobre obras de arte e sua relação com trechos da Bíblia e ideias teológicas. Bruna trouxe o poema Às seis da tarde de Marina Colasanti, que narra angústias e choros femininos durante um dia. É um belo poema, que, relacionado aos versículos Eclesiastes 1:1-11 e Tito 2:11-13 ganha um sentido existencial e humanístico interessante. Houve uma pequena confusão na leitura em roda dos versículos e eu sem querer li em voz alta quando não era minha vez, mas deu certo. “É um poema sobre desempenho e satisfação. O contexto feminino mudou, mas ainda é um lugar de desvantagem social. E nisso a gente se pergunta, ‘onde eu coloco a minha esperança, o meu valor?’”, diz Bruna sobre sua escolha de obra.
A discussão entra em uma crítica a cultura tradwife popularizada nos últimos anos, me surpreendendo positivamente, afinal, achava que a discussão seria pautada em temas mais amplos e celestiais. Thalita abre o tópico “em casa, o trabalho sucumbe. Na rua, o trabalho sucumbe. Se voltar ao que era antes, o trabalho também vai sucumbir. Onde vai desaguar essa busca? É um ciclo insustentável”. Em relação ao texto bíblico e seu clamor por esperança e glória, “o produtivismo vai contra o que entendemos como esperança” diz Pedro. Felipe intensifica a discussão com suas palavras fortes ditas com voz tranquila: “uma coisa diabólica do capitalismo é essa farsa de piedade, ele finge que te dá uma opção”. As discussões continuam, embasadas com algumas citações bíblicas de cabeça, enquanto eu ouço em silêncio e tomando notas excessivas considerando o escopo do texto que estava escrevendo.

Outra frase reveladora quanto ao interesse no estudo bíblico é dita, dessa vez por Bruna: “pensar na justiça de Deus é sempre consolador nesses momentos cotidianos de angústia”. “A fé pode se tornar só um escapismo da desordem, mas é importante encontrar beleza nessa desordem. A gente pode perder a noção da vida e do mundo como Graça”, complementa Vitor, com alguns sorrisos e gesticulando. Uma nova sessão da discussão começa quando Letícia diz: “como podemos responder em obediência?”. A resposta unânime é “chorar”, o que me pegou de surpresa. Achei que haveria alguma sugestão de evento de caridade ou missa temática. “Jesus chega em Jerusalém, vê que tudo está errado, e chora”, diz Felipe, Thalita concorda “Ele era perfeitamente humano e perfeitamente Deus”. Pedro, quieto a maior parte do tempo, diz algo que o grupo todo me pede para anotar: “A gente comete o erro de ver os pecadores como objeto da Graça, mas não os redimidos como produto dela”. Anotei, pois de fato gostei da fala.
Ao final, Letícia lidera uma reza autoral em agradecimento pela reunião, que me fez entender uma fala dela na segunda-feira. “O maior atrativo, pra mim, é, além de ter um espaço diferente da igreja e do culto pra falar de Deus, a amizade. Meus melhores amigos são da ABU”. Da mesma forma que pessoas da atlética ou de extensões se mantém nessas organizações pela conexão humana, o interesse em grupos bíblicos é o mesmo. A maior parte das pessoas gostou de ter uma presença externa nas reuniões, apesar da reticência no ar. Numa visão pessimista é o imperativo cristão de expandir a fé, mas provavelmente era apenas a vontade de criar novas conexões.
*Com edição de Davi Madorra